Toda Nudez Será Castigada (1973)

Nelson Rodrigues (1912-1980) escreveu a peça homônima em 1965, encenada no mesmo ano pelo lendário diretor Zbigniew Ziembiński (1908-1978), com o papel principal da não menos consagrada Cleyde Yáconis. O velho Nelson imprimiu sempre em suas peças uma marca absurdamente realista para os moldes dramatúrgicos de sua época, sendo muitas vezes comparado com o escritor português Eça de Queirós (1845-1900). Seu estilo é combativo, que não foge da cartilha do Realismo, de desnudar a hipocrisia de uma família tradicional, passando pelo casamento e pela fé católica. Um intermezzo de "O Crime do Padre Amaro" e "O Primo Basílio".



O filme, feito oito anos depois com o financiamento parcial da Embrafilme (a estatal que dava grana para as produções nacionais até 1990), é, sem sombras de dúvida, um teatro filmado. O filme padece dos defeitos constantes da "grande mãe" Embrafilme: som ruim, iluminação péssima, tomadas trêmulas. Mas Arnaldo Jabor conduz a película com competência, com o seu já clássico lirismo hiperbólico, numa trama que tem todo o trágico grego ou shakespeareano (Édipo Rei? Otelo, o Mouro de Veneza?) com as belíssimas panorâmicas do Rio de Janeiro dos anos 70.

Herculano (Paulo Porto) perde sua esposa, e cai numa depressão profunda, na velha casa cercada de velhas beatas e fofoqueiras. Seu irmão, Patrício (Paulo Cesar Peréio) é um bon vivant endividado, que induz Herculano a conhecer Geni (Darlene Glória), uma prostituta. Cabe lembrar que o filho de Herculano, o Serginho (Paulo Sacks), é um rapaz de dezoito anos super instável por causa da morte da mãe (louco? gay?), que fez jurar seu pai a nunca casar-se com ninguém, nunca se envolver com ninguém, perpetuar a memória ou a presença da morta. Mas, Herculano, um puritano fervoroso, acaba se apaixonando tresloucadamente por Geni...

Geni é a prostituta mais poética, mais lírica, mais romanticamente arrebatadora das que conheço do pouco que vi de cinema nacional. Um quê de Marguerite Gautier, do clássico francês "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho (1824-1895). Impossível não se apaixonar por ela. Sua presença de palco (ops, de tela) vale a pena ser conferida. Darlene Glória consegue ser apaixonante. E diga-se de passagem que o papel, desde o tempo da peça, foi recusado por vedetes formidáveis como Gracinda Freire e Tereza Rachel, dada sua construção... polêmica?

O romance entre Geni e Herculano é tórrido, de uma intensidade sexual tamanha, com belos enquadramentos de nudez. Na época, a Censura Federal taxou o filme como "imoral". No entanto, por ter recebido o Urso de Prata, no Festival de Berlim de 1973, o filme foi liberado com cortes. Sem contar que também ganhou dois Kikito de Ouro: melhor filme e melhor atriz (Darlene Glória), além de uma menção especial para a trilha sonora. 

A trama é rocambolesca, cheia de reviravoltas, de conflitos, de boas personagens em atuações memoráveis. O filme prende a atenção, caminha, tem enredo caprichado, conduzido com desenvoltura, ainda que com tratamento mais teatral que cinematográfico, ainda que com uma crítica social cáustica, amoral, desnudando como bisturi sem anéstesico as taras, as perversões sexuais de uma contraditória população metropolitana. Bordéis, prostitutas, pederastas, a moral castrante da religião - muitas das vezes hipócrita, a bem dizer. E o plangente tango do genial compositor argentino Astor Piazzolla (1921-1992) é capaz de atravessar com estupenda facilidade a má técnica do som, dentre outras músicas interessantes. O velho Roberto Carlos tocando Detalhes ao fundo, na memorável cena do telefone, pode até ter seu lado kitsch, mas é o encontro perfeito de Jabor-Rodrigues-Roberto na configuração do arrebatado erotismo quebra-tabu que imperou na década de 70.

Confesso que só agora entendi a fúria dos críticos, quando Arnaldo Jabor lançou no ano passado o seu "A Suprema Felicidade". Seu novo filme é de tudo, para não dizer inferior, pelo menos longe da cara de quem fez "Toda Nudez...". É um Jabor 'popificado'. Mas a película de 1973...

É um filme intenso, artisticamente dramático mas com uma boa história, que pode até ter seus momentos de repulsa, de ódio, de sensacionalismo. Mas no geral, excetuando os crassos deslizes técnicos da nossa não muito antiga produção tupiniquim, é o que perfeitamente caracteriza o nosso melhor cinema de outrora.

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