Possessão (1981)
Antes de mais nada, parabéns, São Paulo.
Possessão, 1981. Definitivamente um filme bizarro.
O filme é sobre o casamento; antes, o desgaste de um casamento. Mark (Sam Neill) retornando depois de muito tempo distanciado, tem fortes suspeitas que a sua mulher, Anna (Isabelle Adjani), o está traindo. E de fato ela está se envolvendo com Heinrich (Heinz Bennett), um homem mais velho, experiente, liberal: em suma, o extremo oposto de Mark. Ou seja, Anna procura fortes emoções, e é por causa dessa procura que deixa Heinrich também.
Mas, espera. Heinrich é um cara cheio de lances psíquicos. E, da mesma forma, cheio de bravata. É de enervar qualquer homem quando se tem o contato do amante de sua mulher para... bem, se travar uma competição sexual. "Eu sou muito melhor do que você, é isso que Anna sentiu falta" é o que mais ou menos diz Heinrich para um Mark em frangalhos, se desfazendo como paredes demolidas...
Um pesadelo bizarro.
Anna foge. Esconde seu paradeiro, mas todos os dias pontualmente visita a casa de seu antigo marido para cuidar do filho. Cada vez mais instável, cada vez mais perturbada, cada vez mais estranha. Sem explicações aparentes para essa sua mudança radical, ela fica cada vez mais agressiva, cada vez mais... bizarra?
Mark atravessa sua fossa da separação, começa a enfrentar não só a figura do psíquico, mas tentar transpor a ilogicidade de todos esses acontecimentos. Contrata um detetive para saber onde é que raios a sua mulher se esconde, com quem sai, etc. E o que torna o filme mais inverossímil é a estranha parceria entre Mark e Heinrich.
O cenário é de divisão, pois a janela de Mark dá de frente para o muro de Berlim. E eles lá falam inglês. E eis aí mais uma metáfora complicada?
O detetive desaparece, destino também reservado para os que o procuram. Todos eles não voltam do apartamento abandonado onde descobrem ser o esconderijo de Anna. Heinrich descobre que Anna assassina a todos, e usa o sangue, a carne, talvez a vida, para fabricar uma criatura horrível, tentacular, mutante, disforme. Com essa criatura ela faz sexo de modo tresloucado, bizarro.
Todos estão sendo oprimidos por uma força invisível, esmagadora, mas, ao mesmo tempo, terrivelmente fascinante. Nós da plateia torcemos para que Mark vire a mesa, recupere o brio, mate o monstro, para seguir aquela logicazinha blockbuster do bem triunfante, do mal derrotado. O que não acontece.
Mark tenta reviver novos amores, uma amante esquisita de perna quebrada, até a fofíssima Helen, fisicamente idêntica à Anna mas o extremo oposto dela sentimentalmente falando, amorosa, carinhosa, que é exatamente o que falta para Mark.
Todos os personagens passeiam nesta película de Andrzej Zulawski (roteiro e direção) como se fossem peças de um carnaval do desespero, na iminência, no limiar ou mesmo além do surto psicótico. Mulher da perna quebrada, um funcionário do governo de meia cor-de-rosa. Motorista de táxi que faz uma atitude criminosa com sorriso anárquico e prazer, mesmo com uma arma inútil na nuca. Isabelle Adjani ganhou o Cannes de 1982 por ter representado um papel tão insólito e complexo, coisa facilmente demonstrada naquela sufocante e arrepiante cena do metrô. Este é o segundo filme que assisti da bela francesa. O primeiro, "A história de Adèle H." [François Truffaut, 1975], Isabelle faz também uma pessoa mentalmente instável. Mas "Possessão" vai além.
Sangue. Mortos. Facas. Explosões. Sexo com o demônio. Blasfêmias. Aproximando do final é que o castelo de cartas começa a ruir dessa realidade onírica de pesadelo maldito. Pois o filme não é nem aqui nem em qualquer lugar uma representação da realidade como coisa literal, mas antes uma espécie de "pesadelo filmado". Seu ponto forte é transmitir tanto de irracional, de animal, de ilógico, de primitivo e possessivo da alma humana. Tanto é que "possession", título em inglês, pode ser encarado tanto como possessão demoníaca como o mero substantivo de posse. Posse que Mark tenta ter em Anna; mesma posse que Heinrich tenta esboçar. Até mesmo a posse de Anna no monstrengo sexual só seu, fabricado, montado peça a peça como um souvenir erótico. Monstrengo esse que, no final, assume a forma de Mark como cópia perfeita.
Duas Anna, dois Mark. A dualidade do espírito humano? De um lado a luz, do outro a escuridão. Mas veja bem que as cópias não travam luta. O centro está no casamento desintegrado de Anna e Mark. A guerra entre os sexos? O casamento como aniquilamento massacrante do espírito da liberdade? Uow.
No filme não há conflito entre o Bem e o Mal, pois só o Mal aparece na tela. Há umas incursões sobre a fé, sobre Deus, sobre alma, sobre o Mal personificado. Uma discussão sobre a influência de espíritos malignos? Menos demonológico, mais psicanalítico, eu diria. Mas o que representa o monstro? Monstro da separação? Bem, é um ótimo palpite. Afinal, quem nunca sofreu por amor, quem nunca perdeu? Talvez seja essa sua mensagem mais universal, mas, na boa, o excesso de metáforas torna o filme impalatável. Incompreensível, mas extremamente impactante.
A obra é premiada com o prêmio Fantasporto 83 e grande prêmio de crítica da 5ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sem contar o Cannes e o Cesar de Ouro para Isabelle Adjani.
É incrível que a atuação beira o teatral, com performances extremamente fortes, dramáticas. O filme é um terror psicológico sumamente bem escrito, chocante, que nos persegue muito depois do final com suas imagens asquerosas e sua moral pulverizada. A gente torce por um personagem ou outro, pois, pelo menos no meu caso, ainda há em mim um ranço de cinematografia hollywoodiana mais óbvia, onde existe aquela pálida esperança em que o mal sempre é pisoteado no final, para imprimir uma lógica maniqueísta, triunfalista, puxando brasa para a sardinha do Bem. Ledo engano. Pois além de não haver essa lógica, o Mal reina absoluto. E nos ofende até a falta daquela força moral de Mark ou Anna bater o problema de frente (que nem o padre Karras no classicaço "O Exorcista" [William Friedkin, 1973]), como se o Mal, por ser absurdo, além ou aquém da nossa capacidade de compreensão, torna-se invencível. Mas espera. Será que o final pareceu esboçar algum otimismo?
Só a morte é o final de tamanha histeria, é isso?
Um filme bizarro, definitivamente.
Comentários
Mas tanto pelo filme quanto pelo starbucks, recheado de papos tão ou mais insólitos sobre outros tipos de possessão, nosso passeio foi bem divertido!
Ou pode entender como uma metáfora, ou melhor, várias metáforas. Talvez o monstro nem exista, seja só uma abstração de um bando de psicóticos, neuróticos, ansiosos, etc...
É genial, é pra quem gosta de pensar.
Talvez voce já conviva com pessoas assim como no filme e nem se deu conta...