O último Noitão Belas Artes?
Sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
O cinema estava lotado. O saguão de espera parecia plataforma de metrô em horário de pico. Pessoas das mais diversas, supercoloridas, alternativíssimas. E pairavam no ar sentimentos diversos: a tristeza óbvia do cinema ter seus dias contados; a alegria de trocar as palavras com vários amigos naquela derradeira noite cinéfila; uma outra alegria orgulhosa de ter conseguido pegar o ingresso disputado praticamente a tapa; uma revolta militante ou mesmo uma alienante tranquilidade.
O careca clássico, de quem já esqueci o nome (acho que se chama Márcio), que em todas as edições do Noitão faz a abertura, não faltou dessa vez. Mesmo triste não poupou o bom-humor. Gostei muito quando ele teceu suas duras críticas ao dono do estabelecimento, inclusive nomeando o ato de despejar o cinema de "genocídio emocional". Nome mais que perfeito para explicar uma maldade deliberada a um dos maiores símbolos da noite paulistana.
Mas Flávio Maluf (o proprietário do local) deve ter bem as suas razões além de querer faturar uns cobres a mais. Confesso que ainda não sei quais sejam elas na verdade. Do contrário, eu não teria uma visão unilateral da situação. O fato é que, com uma certa tristeza, uma esperança talvez de encontrar uma nova casa, até mesmo uma felicidade boboca e adolescente de estar testemunhando um acontecimento histórico - é que muitos ali vararam a noite degustando o trio de filmes elencados como de "difícil escolha" por quem preparou todo o programa...
Almodóvar que (ainda) não era Almodóvar
"Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón", a primeira película da noite, é um filme onde Almodóvar ainda não era totalmente Almodóvar. É de 1980, e o primeiro longa do cineasta espanhol. Sim, já se vê a temática sexual sendo tratada sem panos quentes nem moral burguesa, nesta comédia pastelona que não foi feita para mentes conservadoras nem pessoas de estômago fraco. É um filme menor de sua carreira, até porque Pedro Almodóvar não tinha encontrado aquela "fina justeza" entre forma e conteúdo (coisa apenas alcançada a partir do seu "Mulheres à beira de um ataque de nervos", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1989).
Pepi (Carmen Maura) é uma garota moderna, desencanada, "virgem" mas nem por isso menos conhecedora da arte das sacanagens, que sonha em ganhar bastante dinheiro com essa sua virgindade literal. No entanto, um policial (Félix Rotaeta) a estupra, e ela deseja ardentemente se vingar.
Ora, o policial é casado com Luci (Eva Siva), uma dona-de-casa quarentona, submissa, abnegada, meiga, sem personalidade, abusando enfim todos os estereótipos possíveis de uma típica "rainha do lar". Porém é por trás disso tudo que se esconde uma mulher pervertidamente masoquista. O trio ficará completo com Bom (Olvido Gara), uma jovem de dezesseis anos, violenta, sádica, vocalista de uma banda punk para não fugir do clichê. Luci dá o maior apoio à Pepi se vingar do policial, até porque o marido não a interessa mais, pela simples razão que ele deixou de tratá-la com (hã?) a crueldade necessária há muito tempo!
Começa-se então uma insólita aventura pelas ruas de Madri. Com uma trama tolinha e rocambolesca, recheada de cenas extremamente escatológicas, "Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón" é um filme para ser assistido com certo preparo emocional ou para quem já conhece e admira o trabalho de Pedro Almodóvar, em específico desta sua primeira fase.
Microfonia
A reviravolta do Noitão se dá com a obra cerebral "A festa nunca termina", de Michael Winterbottom (diretor de Bem-vindo a Sarajevo [1997], O caminho de Guantanamo [2006]). É um filme inglês produzido em 2002, que retrata de modo fiel (?) e empolgante o cenário roqueiro de Manchester, principalmente as aventuras e desventuras protagonizadas pelo selo de discos Factory Records e do seu proprietário (tido atualmente como uma figura emblemática, visionária e genial do pós-punk) Tony Wilson (1950-2007), papel do comediante Steve Coogan.
O roteiro deve ter sido um calhamaço, dada a quantidade de diálogos. O filme tem um tratamento curioso: as câmeras secas, sem rodopios estilísticos, a fotografia sem frescuras estéticas, dão um aspecto de documentário de televisão. As conversas que Tony trava com a objetiva, narrativas e/ou metalinguísticas, reforçam a atmosfera de reconstituição, até mesmo de informalidade e um certo humor anárquico. Até porque seria enfadonho assistir a um filme sobre rock - a bem dizer um ritmo "jovem" - com formato cansativo e narrativa quadrada. Por isso são louváveis as brincadeiras no longa.
A figura de Tony Wilson - um empresário engajado, verborrágico, empreendedor quixotesco - na verdade não faz o centro da narrativa (ou não o faz sozinho), e sim sua empresa e as bandas por ela lançadas no mercado fonográfico inglês do final dos anos 70 até meados da década de 90. Tudo começa com o lendário show de Sex Pistols, em Manchester, no ano de 1976. É ali que Tony, um repórter da TV Granada, decide dedicar-se ao mundo da música, pelo menos no que diz respeito à gestão de festivais e lançamento de vinis. O que abriria caminho para a criação da Factory e o surgimento de bandas para o consumo do público, como Joy Division, A Certain Ratio, Happy Mondays, New Order, etc.
Seguem-se então inúmeras peripécias. Não só da vida pessoal, social e profissional de Tony, nem do agitado bastidor da gravadora. Mas das bandas, dos músicos, da posterior night club de Tony (The Hacienda), em suma da existência oscilante disso tudo, abalada quase sempre por dificuldades financeiras. E o que é legal, contextualizando tudo isso com a História do momento. Essa incrível epopeia musical termina (após mortes, fracassos e falências) com a antológica experiência em que Tony vê Deus.
Cult ma non troppo
O filme surpresa sofreu muitas reclamações. O desconhecidíssimo cult francês "Harry chegou para ajudar", com roteiro e direção de Dominik Moll, produzido em 2000, possui uma trama que lembra e muito o quase clássico "Sob a sombra do mal" [Curtis Hanson, 1990]. Aliás, os dois filmes tratam de modo aproximado e super dramático as relações que envolvem amizade e... manipulação.
Michel (Laurent Lucas) parte numa viagem de férias de verão para a casa dos pais, juntamente com sua mulher Claire (Mathilde Seigner) e as crianças, a fim de se livrar do estresse. No entanto, em um dia de muito calor, a mulher nervosa e as crianças chorando, a viagem se torna literalmente em um verdadeiro inferno. Ao parar em um posto de gasolina de beira de estrada, Michel reencontra um amigo dos tempos do colégio: Harry Ballestero (Sergi Lopez). Na verdade, é Ballestero quem encontra Michel, visto que Michel é incapaz de reconhecê-lo, muito menos lembrá-lo de nome. Vemos também o quão estranho e enigmático pode parecer Ballestero, pois recita de memória um poema escrito por Michel nos esquecidos tempos de escola.
Harry e sua namorada acabam sendo convidados por Michel para passar uma temporada em sua fazenda, já que a viagem programada se torna inviável para ambos os lados. Lá Harry vê de perto as dificuldades financeiras bem como as indisposições familiares do seu "velho-novo" amigo. Harry é um playboy, perdulário, aventureiro e extremamente rico. No entanto a vida conturbada e frustrante de Michel é capaz de sensibilizar Ballestero, chegando ao ponto deste presenteá-lo com um carro muito custoso, depois da lata-velha de seu amigo tornar-se imprestável. Mas o que realmente incomoda Harry é que seu amigo não escreve nada há anos, ofício para o qual Michel (ao seu ver) deveria retornar.
Há uma espécie de fanatismo doente em Harry, disfarçado numa preocupação a bem dizer amiga e, em certo plano, constrangedora. Mas o interessante a ser notado é que, cada vez que Michel recebe a ajuda de Harry, fatos estranhos acabam acontecendo...
Suspense psicológico que prende a nossa atenção de modo espetacular, pecando porém por tornar a figura de Harry em óbvia suspeita desde o início, a agonia está em saber quais as intenções verdadeiras dele, intenções essas que soam nebulosas mesmo depois do final do filme. Ao menos que o roteirista queira resumir toda a "malvadeza" de Harry apenas na obsessão rasa e ingênua e quase autoritária para que seu amigo volte a escrever... Só isso?
O ponto forte de "Harry chegou..." é exatamente esse: mais esconder do que explicar, deixando o "vilão" assumir muitas leituras e conotações complexas.
Oscilando entre a comédia e o suspense, o filme pode apresentar até fotografia, atuação, iluminação e cenários bem comuns, mas o roteiro é de uma força extrema, super bem escrito, original, embora o final não é passível de estrepitoso aplauso.
The end?
Findando o Noitão, bateu aquele estranho vazio, uma dolorosa sensação de perda. Peguei meu pacotinho de café-da-manhã, andei passos tontos pela manhã fria, tranquila e cinzenta da Avenida Paulista. Mas poupo o melodrama.
Poupo, porque a esperança é a última que morre. Na quarta-feira subsequente (19/01) leio nos jornais que o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) decide discutir o tombamento do prédio. Também leio que Flávio Maluf muda até o tom das palavras, em procurar discutir preço de aluguel "em preço conforme mercado". Flávio Maluf! O mesmo cara que antes dissera: "Cinema é decadente, quero colocar uma loja em meu imóvel".
E antes que o leitor considere este texto incompleto, o "último" Noitão na verdade não o foi. Haverá um repeteco para os que perderam o ingresso, e ocorrerá nesta sexta, dia 21...
Harry e sua namorada acabam sendo convidados por Michel para passar uma temporada em sua fazenda, já que a viagem programada se torna inviável para ambos os lados. Lá Harry vê de perto as dificuldades financeiras bem como as indisposições familiares do seu "velho-novo" amigo. Harry é um playboy, perdulário, aventureiro e extremamente rico. No entanto a vida conturbada e frustrante de Michel é capaz de sensibilizar Ballestero, chegando ao ponto deste presenteá-lo com um carro muito custoso, depois da lata-velha de seu amigo tornar-se imprestável. Mas o que realmente incomoda Harry é que seu amigo não escreve nada há anos, ofício para o qual Michel (ao seu ver) deveria retornar.
Há uma espécie de fanatismo doente em Harry, disfarçado numa preocupação a bem dizer amiga e, em certo plano, constrangedora. Mas o interessante a ser notado é que, cada vez que Michel recebe a ajuda de Harry, fatos estranhos acabam acontecendo...
Suspense psicológico que prende a nossa atenção de modo espetacular, pecando porém por tornar a figura de Harry em óbvia suspeita desde o início, a agonia está em saber quais as intenções verdadeiras dele, intenções essas que soam nebulosas mesmo depois do final do filme. Ao menos que o roteirista queira resumir toda a "malvadeza" de Harry apenas na obsessão rasa e ingênua e quase autoritária para que seu amigo volte a escrever... Só isso?
O ponto forte de "Harry chegou..." é exatamente esse: mais esconder do que explicar, deixando o "vilão" assumir muitas leituras e conotações complexas.
Oscilando entre a comédia e o suspense, o filme pode apresentar até fotografia, atuação, iluminação e cenários bem comuns, mas o roteiro é de uma força extrema, super bem escrito, original, embora o final não é passível de estrepitoso aplauso.
The end?
Findando o Noitão, bateu aquele estranho vazio, uma dolorosa sensação de perda. Peguei meu pacotinho de café-da-manhã, andei passos tontos pela manhã fria, tranquila e cinzenta da Avenida Paulista. Mas poupo o melodrama.
Poupo, porque a esperança é a última que morre. Na quarta-feira subsequente (19/01) leio nos jornais que o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) decide discutir o tombamento do prédio. Também leio que Flávio Maluf muda até o tom das palavras, em procurar discutir preço de aluguel "em preço conforme mercado". Flávio Maluf! O mesmo cara que antes dissera: "Cinema é decadente, quero colocar uma loja em meu imóvel".
E antes que o leitor considere este texto incompleto, o "último" Noitão na verdade não o foi. Haverá um repeteco para os que perderam o ingresso, e ocorrerá nesta sexta, dia 21...
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