Cisne Negro (2010)

A vida é uma guerra ou um espetáculo?

Que Natalie Portman entregou-se totalmente em seu papel, não há sombras de dúvida. E que papel complexo! Uma mulher insegura, fragilizada, que aos 28 anos praticamente vive dilemas adolescentes, sofrendo a esmagadora pressão do seu trabalho na companhia de dança; sofrendo uma vida sufocada pelos mimos (?) da mãe. Soa até irônico admitir que Natalie Portman deu vida a uma personagem... sem vida?



O filme tem tomadas esdrúxulas, mas, calma, isso não é uma crítica negativa. O filme caminha entre a realidade e as fantasias da dançarina de balé clássico Nina Sayers (Natalie Portman), ou antes seus pesadelos, fobias e paranoias. A sensação transmitida é de delírio, de uma loucura represada, de obsessão. E de cara entramos no drama da personagem; esse desejo esquizofrênico de seguir adiante por idealismo, e de ficar por medo. De desafio e de acomodação; de sonho e de realidade. Sem esquecer uma apresentação por demais pedagógica do sacrifício, da superação, vitória no final - temas surrados de grande apelo popular. Mas...

Thomas Leroy (Vincent Cassel) é o genial diretor da companhia. Um déspota, para falar a verdade, que sabe tirar proveito de sua posição e da insegurança de suas subordinadas. Porém, Nina é tão amedrontada, tão insegura, que frustra Leroy depois deste ter dado um convite sexual para lá de explícito. Virgem. Não é à toa que a veterana Beth MacIntyre (papel da musa de olhos grandes Winona Ryder) a chama de "fraca frígida", embora esta frase fosse fruto da raiva de Beth ter perdido o cobiçado papel principal de "O Lago dos Cisnes", de Piotr Tchaikovsky (1840-1893)... para Nina.

Nina é obcecada pelo papel, mas seu perfeccionismo técnico faz da dança passos marcados em rigor de relógio. Fria, distante, sem vida. Leroy a desafia sexualmente (para a dança? para a vida?), e ela aos poucos cede terreno; um beijo na boca trêmulo... a mão titubeante na masturbação... como uma mera adolescente se iniciando sexualmente. Detalhe: ela tem 28 anos.


O quarto fofo, com bichinhos de pelúcia, papel de parede cor-de-rosa... caixinha de música... dançarina de balé clássico... O filme, ao invés de mostrar mimimis que todo esse cenário nos remete, nos mostra, aliás, uma realidade magistralmente terrível. Retrata de modo fiel e sem tons pastéis nem linguagem pasteurizada o quão difícil, penosa, ingrata e volátil é a carreira de dançarina. Sem contar a concorrência acirrada, os assédios sexuais sofridos, a pressão, a manipulação... Um mundo sujo por trás de flores, cisnes, fineza, suavidade e beleza. Mas o inferno não só se resume ao que ocorre do lado de fora.

Nina vive um inferno literal. A sua fragilidade torna-se evidente nas cenas onde ela sofre repentinos sangramentos sem grandes causas plausíveis, lágrimas de quem se sente constantemente bombardeada. Sua mãe supercontroladora Erica (Barbara Hershey) busca fazer da filha o que ela própria não foi no passado (Erica foi dançarina mas abandonou a carreira quando a filha nasceu). Por ser projeção das frustrações e fracassos da mãe, Nina se sente preso a uma espécie de contrato hereditário, vitalício, a uma espécie de missão. Uma flor dentro de uma redoma de vidro, para o bel-prazer dos outros...

E o que dizer da bela Lily (Mila Kunis, de O Livro de Eli - Albert & Allen Hughes, 2010)? Rival de Nina, de personalidade astuta, a seduz sexualmente. Lily é a personagem que melhor orbita não só entre a realidade e a loucura de Nina, mas na linha tênue que separa a sua acomodação e a necessidade urgente de quebra de paradigmas morais. Daí, o filme se mostra como uma "loucura filmada", "um pesadelo frente às câmeras", o que me faz lembrar do Possessão [Andrzej Zulawski, 1981] recentemente apreciado. Cisne Negro tem um quê de fantasia, de simbólico, de parábola, de fábula contemporânea. Só que é de uma loucura que desenrola num crescendo.



Acompanhamos uma transformação dramática. Da garota aviltantemente submissa e despersonalizada à mulher implacável e determinada. Mas tal quebra de algemas não é nem de longe uma coisa pacífica. Suor, sangue, lágrimas, iras, embates e lágrimas outra vez. Drogas, sexo, pegadas na noite. Esmigalhando as projeções (frustrações?) da sua mãe - bem como seus dedos -, pulverizando o conservador moralismo mambembe da qual é Nina prisioneira, um indiscutível tom didático e, de certa forma libertário da vida agressiva apresentada é o que se salta de modo preponderante no longa. Por essa razão, o filme não é nem de longe um romancezinho açucarado, um draminha choroso, de fácil deglutição. É antes um filme dark, tenso, denso, chocante, um horror que caminha de mãos dadas com um lirismo arrebatador.

Que a vida é uma encenação carente portanto de delicadezas estéticas; que a vida pode significar também a morte de outras pessoas, lágrimas de entes queridos, destruição de velhos (e pretensamente inamovíveis) ídolos - são algumas das muitas leituras que podem ser feitas desse "conto de bruxas" moderno, quando chegamos extáticos ao final. Real, visceral, terrível, passional, implacável, um ensaio quase panfletário da intensidade na vida, no palco, na cama... Esse conceito beligerante de vida, no filme, estreita mais os diálogos entre a Arte e a Existência: como se as duas fossem intimamente relacionadas, indivisíveis, conflitantes...

Um conceito de arte? Um conceito de vida? Os dois? Quem é quem? A vida pela arte ou a arte pela...?


Cisne Negro é um filme para ser assistido e ser envolvido na tela grande, deixar-se levar com sua fotografia itinerante de câmera na mão, sua trilha sonora abundante, suas atuações marcantes. E um bom conselho a todos é acompanhar mais de perto, e com mais frequência, o trabalho desse genial diretor, Darren Aronofsky.

Comentários

Rubens Marinho disse…
O filme realmente é um espetáculo, quando assisti pela primeira vez fiquei impressionado e calado por um certo tempo, porque não há dúvidas, o final é chocante. Boa sua crítica Sr. Fernando, apesar de todas sempre ter esse tom de: "Eu gostei do filme, mas não quero dar nota 10, então, fica 9, 9."

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