[ESPECIAL] Adeus, Belas Artes
Depois de 68 anos, o Cine Belas Artes encerra as suas atividades
Eu sei que o proprietário do imóvel pode fazer o que bem entender com ele, alugar para quem quiser. Mas não consigo enxergar na birra de Flavio Maluf outra coisa que não seja puro mercantilismo.
Quinta-feira, 17 de março de 2011. Depois de uma luta corajosa, a qual sensibilizou e mobilizou pessoas das mais diversas, o Cine Belas Artes encerra suas atividades. É uma perda imensa, mas não uma derrota. A força com que este cinema abraçou a causa de permanecer no local é extremamente louvável. Foi isso que lhe deu uma sobrevida. E fez abrir os olhos de muitos sobre a sua importância.
Belas Artes se consagrou por exibir filmes alternativos, fora dos circuitos comerciais. Ele é um dos poucos, dos míseros cinemas de rua, que há anos luta pelo direito de existência contra gigantes do entretenimento fácil das multidões. E como tantos e tantos outros, foi cortado pela tesoura do capitalismo selvagem. Infelizmente tem sido assim. Vemos a arte sendo sucateada por tramas fáceis, deglutíveis, demagógicas, delineadas por fórmulas capitalistas. O cinema de autor - sim, aquele cinema, onde o cineasta não busca resultados óbvios, mas esboça todo um plano de carreira, levantando bandeiras ideológicas, experiências estéticas e pincelando discussões - o cinema de autor cada vez se torna distante, inacessível... O cinema comercial, aquele que busca os lucros acima de qualquer qualidade artística, o cinema que encara sucesso apenas pelo sucesso de bilheteria, vai fincando raízes, educando a todos a suas fórmulas exaustivamente repetidas como padrões inquestionáveis... e lotando o público dos shoppings, essa colorida praia paulistana...
Acredito que todo o cinema tem seu direito de existência. As pessoas precisam de um Rambo, de um Harry Potter, de um Crepúsculo, de um Mazzaropi como precisam de um Luzes da Ribalta, O Jarro, A Doce Vida, de um Ingmair Bergman... Não é todo mundo que quer assistir para todo sempre um filme cabeçudo... e nem todo mundo quer passar a vida assistindo filmes fáceis, de ideologia descartável, passatempo descompromissado. É necessário esse pluralismo, pois como hei de achar que uma coisa é ruim se me impedem de conhecê-lo? E é bom somente aquilo que se vende à farta?
Só existe democracia com o pluralismo e o livre acesso da informação.
O que se vê é uma pretensa uniformização cultural por parte dessas ditaduras pop. Uma arte apenas como promotora de sensações voláteis, não como reflexão sobre a situação humana. E aí entram os blockbusters, os ídolos fabricados pela mídia, pela publicidade. É bem verdade que ninguém vai ao cinema levar a namorada para resolver uma difícil pendência de política ou antropologia. As pessoas que encaram o cinema como fuga dos seus cotidianos problemas pessoais, abraçam aquele velho axioma hollywoodiano que o cinema seja mesmo uma bem-acabada fábrica de ilusões. E só. Assim, na busca eufórica de sensações e emoções, do desligar-se da realidade como desbunde, essas pessoas rendem bilheteria aos filmes que mais falam aos seus apelos primários. Isso é errado, é ruim? Não, de modo algum. Mas empobrece o cinema, vetando-o de todas as suas potencialidades como arte dramática, como veículo de comunicação e identidade de uma cultura, de uma época.
É bem verdade que o cinema de autor por anos se quis inacessível, como se buscasse a equação: mais indecifrável, melhor. Por exemplo, na década de 60, os filmes simples do Mazzaropi enchiam salas de projeção, enquanto as obras do Cinema Novo passavam batidos pela incompreensão das massas. Por essa razão, o cinema comercial se mostrou capaz de atrair multidões por possuir roupagem bem mais comunicativa. Quando cineastas viram que o cinema também era comunicação (cômico constatar isso, mas é verdade), fizeram filmes formidáveis, complexos e que o público se identificavam. Mas certamente devido a uma complexa conjuntura política, grandes produtoras e distribuidoras se interessaram só por filmes desinteligentes, numa proporção esmagadora. E lançando estereótipos e preconceitos: quem curte filme pop é cara legal; quem curte filme cult é chato, intelectualóide, cri-cri. Os cinéfilos se defenderam erradamente com o extremo oposto: quem curte filme pop é idiota, gente burra; quem curte filme cult é um cara inteligente, antenado. E mal entendem todos o quão frágeis soam essas certezas, e o ridículo erro desses extremismos. Pois ambos os cinemas são necessários. Isso numa questão de equilíbrio, não numa luta de domínio e poder nos gostos do povo.
Belas Artes servirá como a mais perfeita metáfora dos nossos tempos. Do cinema que lutou romanticamente, quixotescamente contra essa uniformização cinematográfica. Forças implacáveis impõem de modo sutil o mainstream da arte atrelada às cifras, às multinacionais norte-americanas do entretenimento. Já dizia o famoso crítico e historiador de música popular brasileira José Ramos Tinhorão que todo problema cultural também é um problema político. E a política que se vê é da obviedade hollywoodiana (o que não quer dizer que Hollywood façam só filmes bobocas, que isso fique bem claro), da pobreza ideológica, da globalização da babaquice.
As manifestações que aconteceram, os ingressos sempre esgotados em seus últimos dias, e o repúdio que diferentes pessoas e classes compartilharam contra esse despejo do cinema mais querido de São Paulo revelaram quase que matematicamente que a população não é manipulável como pintam os nossos sociólogos. Que cinema de arte não é uma coisa para gente extravagante, arrogante, que fuma charutos intelectuais, inacessível como néctar dos deuses. E que cinema à la Cinemark (essa "Antena 1" da sétima arte) nem sempre é um produto de consumo indiscutível, e que há sim boas propostas cinematográficas diferentes.
Belas Artes está fechado. Uma tristeza imensa pisar naquele chão, sentar naquelas poltronas sabendo que é pela última vez. A música plangente de O Leopardo, de Luchino Visconti me emocionou deveras, pois veio de encontro certeiro a lindas nostalgias e a cancerosa sensação de perda. Amigos, noitões, grandes filmes. A madrugada se desenhando na principal avenida da maior cidade do país. Se o processo do Conpresp acerca do tombamento não vingar, tenho a plena certeza que o cinema abrirá em outro lugar, conforme sinalizou o sócio André Sturm em seu derradeiro dia. Sua história recente é uma semente que gerará muitos frutos, não só no coração de quem é cinéfilo. Se por um lado pode significar o quanto os interesses de poucos podem prejudicar os anseios de muitos, deixando cicatrizes indeléveis em uma geração, por outro, existe o consolo de que ainda há gente que sonha. E que este aparente puro concreto das mentes ainda pode ser um dia um vasto jardim de flores, das mais lindas e perfumadas.
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