O Discurso do Rei (2010)

O Oscar não surpreendeu. Com sua festa superquadrada, suas piadas enfadonhas, suas gafes ensaiadas, a entrega das estatuetas aconteceu da maneira mais previsível possível. E ninguém fingiu surpresa quando O Discurso do Rei [Tom Hooper, 2010] levou o prêmio de melhor filme.


O Discurso do Rei conta a história verídica de George VI (1895-1952), o terceiro membro da Casa de Windsor a assumir o trono do Reino Unido, e... em luta com a própria voz. Colin Firth está impecável no papel. Ele captou de modo brilhante a expressão facial de quem sofre de gagueira - aquela expressão sui generis, mista de angústia e hesitação. Não conheço o trabalho anterior de Firth, mas percebi que desde o ano passado a Academia vem olhando este ator com olhos bem diferentes (concorreu para melhor ator em 2009 por O Direito de Amar - do diretor estreante, o estilista Tom Ford - mas perdeu para um incrível Jeff Bridges, em Coração Louco [Scott Cooper, 2009]).

Acredito que Colin não seria o que foi se não contracenasse com um cara espetacular chamado Geoffrey Rush, o fonoaudiólogo sem diploma Lionel Logue (1880-1953). Sim, o mesmo Barbarossa de Piratas do Caribe. Veja que química formidável: de um lado a altivez, a fineza, a dicção ótima e elegante de Lionel; do outro, a arrogância vacilante de um membro fraco e diminuído da realeza...

Num primeiro momento, existe até uma polarização desagradável entre esses personagens que, no decorrer da trama, vai se diluindo, enfraquecendo, diminuindo. Lionel, com seus métodos terapêuticos controversos e sua personalidade forte, está disposto, se não a sarar seu ilustre paciente, pelo menos a torná-lo capaz de falar bem em público. É claro que isso não acontece de modo automático nem isento de conflitos. A relação George-Lionel é pontuada de indisposições e diferenças.

"Bertie" - nome de George para os íntimos, já que ele ainda não era o monarca George VI, mas apenas o duque de York - "Bertie" não tem segurança nem fé em si próprio, e o filme caminha nessa gradual metamorfose de auto-afirmação. Na verdade, essa é a linha condutora do enredo. Sem contar o tratamento espetacular dado a essa ferramenta poderosa chamada palavra, e sua importância nas relações de poder na História, ainda mais na época delicada que é ambientado o filme. Bertie está inteiramente convicto que o monarca não mais possui um poder literal, e sim uma liderança simbólica. A História não mais dá espaço para reis heroicos, gloriosos e inabaláveis, sempre no centro de redemoinhos épicos de nacionalismo exaltado e de moral cristalina. Não. O rei serve apenas para a inspiração de um país. Nessa relação, a palavra, o discurso - tudo isso tem um papel imprescindível.

George VI representa bem essa transição. Com o nazismo se espalhando, a iminência de uma grande guerra, as tradições arcaicas e anacrônicas de uma família real claustrofóbica e reprimida em franco choque com os valores de um mundo em constantes e violentas transformações - os dias tornam-se cada vez mais sombrios, cada vez mais complicados. Hitler vinha provando como os seus discursos inflamados tinham eficácia para manipular as multidões... E como um rei gago poderia então representar a resistência?

Não é exagero afirmar que a palavra assume o centro da trama. Tanto é que é por causa dela que Bertie vai deixando de ser Bertie e se constrói a duras penas o Rei George VI... Infelizmente se tem que admitir que sua emocionante história de superação nada de novo acrescenta em matéria de narrativa. Seu final é previsível, o roteiro correto, impecável no que diz respeito a certas nuances históricas, mas sem ousadia alguma. E, de quebra, mantém semelhanças gritantes com A Rainha [Stephen Frears, 2006].


Mas é um filme feito com muito estilo. A performance dos atores (Helena Bonham Carter conseguiu se desvencilhar das maneirices que a consagraram!), a extraordinária direção de arte, a leveza e a elegância das câmeras - tudo isso conferiu à película uma fineza incomparável. É raro prestigiarmos filmes onde a forma e o conteúdo se casam com tão fina justeza, com tamanha propriedade.

Diante da atmosfera over de Cisne Negro, do corre-corre blockbuster de A Origem ou mesmo do drama cabeçudo de A Rede Social, O Discurso do Rei é um filme de bons momentos e boas sacadas, que mereceu todos os Oscar que recebeu, mesmo se tratando de um clássico de superfície.

Comentários

Rubens Marinho disse…
Mereceu? Humm, discordo de você, mas tá bom.

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