Nada a Perder (2018)

PARTE I: Apontamentos sobre o homem aquém do mito

E eis que Nada a Perder chega ao Netflix.

É sempre uma tarefa difícil falar de Edir Macedo, essa figura controversa. Parece que nunca seremos capazes de olhá-lo com isenção, sem cair nos estereótipos de “homem de Deus” ou de “mercador da fé”, sem superar a devoção religiosa ou a figura que ficou no imaginário popular.

Porque o nome dele faz um verdadeiro contorcionismo entre a defesa acrítica de seus seguidores e o forte preconceito de seus detratores.

Muita tinta se gastou falando nele, quer seja na imprensa, quer nos processos judiciais, nas teses acadêmicas, nas redes sociais ou no caudaloso material que sua instituição, dia após dia, produz.

Mas, afinal, quem é ele?

Assistimos ao filme, vemos a sua humanidade sendo deformada pelas lentes grossas da mitificação. Talvez nunca saibamos quem seja esse carioca radicado nos EUA – sempre oculto atrás de camadas e camadas de discurso oficial e aura religiosa.

Olha só que interessante paradoxo: sempre oculto, mas com grande apetite de aparições sensacionalistas. O filme, as “pedaladas” em computar a venda dos ingressos (e as avaliações dos usuários nos principais sites de cinema), a ciranda política, os livros na lista dos best-sellers, mais reforçam a confusão.

Quem é Edir Macedo? O que ele quer?

É praticamente impossível falar de Edir Macedo e não falar da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). E vice-versa. A transnacional da fé exala seus próprios humores, como uma extensão gigantesca de sua psique. Poderosa, arrogante e megalomaníaca, a IURD já virou de cabeça para baixo a religiosidade brasileira.

Dizem que toda religião diz muito de sua época e de sua sociedade. A Igreja Católica, por exemplo, em seus ritos, tem muito de Idade Média. O Protestantismo, por sua vez, retrata os valores da Idade Moderna. O Espiritismo é a religião do cientificismo do século XIX. 

Se isso for verdade, como entenderíamos a IURD? A fúria sincrética da fé no contexto do Rio de Janeiro sob o “milagre econômico”? Deus abrasileirado, “cordial”, que quer nos ajudar a ser alguém via sociedade do consumo? O Brasil profundo com ganas em modernizar-se?

É também curioso perceber que, no Rio de Janeiro onde nasceu a suavidade apolínea da bossa nova e o furor dionisíaco do funk carioca, tenha nascido também a IURD, uma mistura de empresa e agência de cura, de consultório e escola, de auditório e sindicato. 

Uma igreja que se notabilizou com pastores de branco abençoando sal e arruda em cadeia nacional, uma constelação de empresas dos mais diversos ramos, Arca da Aliança feita de plástico, réplica do Templo de Salomão encravada numa avenida de passado operário, em São Paulo, no Brás, etc.

A Igreja Universal é o Brasil Grande, para o bem ou para o mal.

Mas a IURD também é, digamos, a faceta mais visível e barulhenta desse senhor de setenta e poucos anos, ex-funcionário público da Loteria do Rio de Janeiro, magnata das telecomunicações e bispo blockbuster que ainda reage mal aos dislikes.

A IURD é o bispo Edir Macedo.

Tanto é, que, como exercício mental, é interessante imaginar como será o futuro da instituição quando ele, com o avançar da idade, tornar-se frágil demais para continuar liderando ou quando vier a falecer. 

Talvez, nessa altura, a igreja tome cara de instituição consolidada, estabelecida, sem esses espasmos de crescimento agressivo. 

É possível que essa necessidade atual dele de fazer obras de grande vulto, de contar a sua visão dos fatos, talvez seja uma forma de não querer morrer.

E agora, o polêmico teólogo tropicalista quer ser amado através da mais cara das artes que é o cinema. Do jeito dele, sem pedir licença, sem fazer autocrítica e fazendo muito barulho. Ressentido, o bispo mostra como todos foram contra ele, mas ele venceu "surpreendentemente". 

A princípio, tentamos entender o motivo dessa “lavação de roupa suja” na tela grande. 

Engolimos em seco quando percebemos que estamos acompanhando (meio cúmplices, digamos) a revanche do Macedo. Como convidados daquela festa de casamento de opulência tal em que o noivo quer celebrar sua “volta por cima”. Talvez toda sua trajetória impressionante seja uma grande revanche contra seus fantasmas, seus inimigos, o mundo que ele nega a aceitar.

Para mim, Edir Macedo é o cúmulo da brasilidade, esse permanente estado do nosso país, parado a meio caminho entre o arcaico e o moderno. Tudo nele é extremo, híbrido, fronteiriço. 

Em um momento, olhamos para ele, encontramos um gênio empreendedor, visionário, que provocou um curto-circuito no País para fazer o que acreditava – e fez muito. Em um outro momento, encontramos um “jagunço corporativo da fé”, uma figura autoritária, paranóica, a representação máxima do “jeitinho brasileiro” transplantado no ambiente religioso.

De um lado, vemos um revolucionário dentro da tradição pentecostal, que atualizou nossa relação com o sagrado à luz dos novos tempos, como um Osho tupiniquim cristão. Do outro, a personificação ressentida desse capitalismo canibal praticada cá nos trópicos, sob a bênção de Deus. Um Robin Hood às avessas.

Ou o religioso da classe média que, ao não ser aceito numa instituição, resolve ele mesmo criar a sua própria. De empregado a patrão, de ovelha a pastor. Pastor, não: bispo.

O filme, evidentemente, passa longe dessas reflexões, fixando apenas no aspecto exterior, do “mito”, na tela. Chegamos a pensar o quanto de ficcional há numa autobiografia, a trucagem que se faz dos eventos, a interpretação deles, as omissões e o exagero das tintas.

No filme, Macedo (Gontijo) passa por um caminho que, se há muitas pedras, há poucos equívocos. 

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