Jesus Cristo Superstar (1973)

Com canções incríveis, filme é poderosa peça publicitária do musical original

Confesso que esse foi para mim um filme muito difícil de avaliar. Ainda mais quando se é cristão, cinéfilo e fã da música – e do cinema – dos anos 1970. Mas vamos lá.

O diretor canadense Norman Jewison – do subestimado F.I.S.T. (1978), protagonizado por Sylvester Stallone – faz um filme até certo modo simplório: uma trupe de artistas hippies representando os últimos dias de Cristo no deserto, apenas com canções.

Jesus Cristo Superstar foge bastante daquilo que estamos acostumados a ver em filmes bíblicos. Não há a grandiloquência épica de filmes como Os Dez Mandamentos (Cecil B. DeMille, 1956) ou Jesus de Nazaré (Franco Zeffirelli, 1977) por exemplo.

Baseado na ópera-rock de 1970, do midas da Broadway Andrew Lloyd Webber, com letras de Tim Rice, Jesus Cristo Superstar foi filmado em catorze semanas no deserto de Israel.

À época, Jewison falou que o filme era uma tentativa de “misturar o antigo e o novo, com poucas palavras e muita música” e que “o título [do filme] sugere dois temas: Jesus Cristo, reverente, bíblico, e depois Superstar, hippie, contemporâneo”.

Cristo (Ted Neeley) é apresentado como um homem hesitante, fragilizado, claudicante. Embora os traços de Neeley sejam semelhantes ao Jesus clássico dos afrescos litúrgicos da Idade Média, há algo de confuso, de apagado, de insípido em seu semblante. Nem utilizando jogo de luzes solares em sua face nos faz convencer de seu messianismo. Mas é difícil saber se o problema esteja no ator.

Anos-luz do Cristo revolucionário de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) – em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) –, aqui Jesus parece ser um conformista, engolido pela fama célere que se construiu em cima dele.

Judas (Carl Anderson – 1945-2004), por sua vez, é representado como uma pessoa torturada. A atuação de Carl Anderson está excelente, seu Judas tem força, tem energia e, talvez por essa razão, ele nos pareça mais simpático, numa sutil e original inversão.

À primeira vista, incomoda ver Judas – o paradigma clássico da traição, segundo a tradição cristã – sendo interpretado por um ator negro. Porém, vemos depois que o incômodo não se justifica, é mais um resultado de nosso condicionamento moral nestes tempos “politicamente corretos” que da estrutura do filme propriamente dita.

Até porque Judas é o protagonista, em declarada (irônica?) contestação breve ao título do filme. A traição toma, digamos, contornos mais complexos. Judas é visto como alguém que admira o homem Jesus, mas acha que a sua popularidade está indo longe demais, está fugindo do controle.

A tentativa – desastrada – de Judas em fazer Jesus “parar” de se dizer Deus desemboca no julgamento “comprado” pelos judeus e na consequente pena de morte com crucificação.

A tese do filme é que Jesus Cristo foi o primeiro grande astro que a humanidade já conheceu. E que, por conta disso, sofreu as penas da época. Pode-se tirar disso alguma reflexão ou crítica (hipócrita, se partindo da Broadway ou Hollywood) sobre a noção atual de celebridade. Quer dizer, há dois mil anos, a máquina do showbiz triturava astros do mesmo jeito.

O filme, como era de se esperar, gerou polêmica. O papa da época Paulo VI (1897-1978) definiu-o como “um torpe filme erótico”. Embora o affair entre Jesus e Maria Madalena (Yvonne Elliman) é mostrado às claras, para olhos contemporâneos não existe nada de erótico. Filmes infanto-juvenis atuais conseguem ser mais calientes.

Todavia, a cantora e atriz havaiana Yvonne Elliman merece todos os aplausos. Sua voz é doce, afinada, e não é à toa que ela é a única do elenco do filme que participou da montagem nos palcos e teve sua interpretação gravada no álbum Jesus Christ Superstar: A Rock Opera (MCA Records, 1971). Seu amor e devoção a Jesus é intensa e vívida, nós sentimos que ela o ama de verdade.

NORMAN JEWISON

Jewison não está nada preocupado com os cânones realistas. Excetuando Jesus, os outros personagens usam jeans, cabelos black power, e tantas outras coisas que cheiram à modernidade em 1973. Há sem dúvida, liberdades engenhosas, como utilizar tanques e aviões de guerra para representar o poderio romano da época, por exemplo.

O diretor Norman Jewison com Ted Neeley no set de Jesus Cristo Superstar, em 1972

É interessante destacar que Jewison no final “tira o próprio braço da seringa”. Não toma partido, já que o filme todo é reduzido a mera performance de dançarinos no deserto. Esse tratamento oblíquo do diretor foi uma solução fácil, cômoda, mas empobrecedora.

Nesse aspecto, ele se assemelha a estes diretores que assinam versões de best-sellers, cujo mandamento mais vale adaptar com alguma fidelidade do que recriar com criatividade. De modo análogo, o filme funciona como uma poderosa peça publicitária do musical: no final, sentimos vontade de ir na primeira montagem de JCS que houver na nossa cidade.

Musicais concebidos para o palco e transpostos para as telonas sofrem inevitáveis perda de substância. No filme, o que agrega são as imagens deslumbrantes do deserto de Israel. Mas a sensação é que o deleite tornar-se-á completo se houver acesso ao formato original. O filme seria um consolo, um produto menor.

Fora que o gênero cinematográfico “musical” é um gênero tão idiossincrásico, que o que pode ser um deleite para uns, significa um verdadeiro tormento para outros.

Atualmente, musical no cinema tem se tornado numa linguagem morta, numa espécie de exercício anacrônico de estilo. E mesmo assim, em sua maioria, são filmes que mantêm diálogos “normais” que se interrompem ao explodirem passinhos e orquestra, como os clássicos Disney da era de papel e os musicais MGM de cinquenta, sessenta anos atrás.

Em JCS não há um momento de diálogo “normal”. Só música. Por um momento, tem-se a sensação que o filme é uma sucessão de vários filmes menores, apenas ligados pelo personagem principal. Logo depois, a sensação é que estamos diante de um álbum sendo tocado. Há até as pausas que separam as músicas, que coincidem com cenas de pouca importância dramática. E isso faz o filme ficar um pouco monótono. É um filme para se escutar.

OUSADIA, FANTASIA E ROCK

Fruto do seu tempo – afinal, toda época reinventa seu Cristo –, JCS dessacraliza o sacrifício de Cristo (Jesus Christ, Jesus Christ, / Who are you? What have you sacrificed? / Jesus Christ Superstar, / Do you think you're what they say you are?) e o apresenta com ares de espetáculo. De certa forma, o filme todo é uma celebração ao espetáculo, como tudo na Broadway. E isso pode desagradar cristãos conservadores.

Ousado, sem pretender revisionismo histórico ou teologia, o filme é mera fantasia sobre a vida de Cristo, com um quê iconoclasta, mas respeitoso; impactante, mas harmonioso.

Musicalmente delirante, o filme é uma releitura pop do episódio bíblico sob a marcação de um rock pulsante, sensacional, dos anos 1970, lembrando bem os sucessos radiofônicos da época.

Mas o mais importante, antes e acima de qualquer juízo de valor, é acompanhar os sentimentos dos personagens bíblicos, que às vezes são doces, contraditórios, confusos, mas sempre demasiadamente humanos.

JESUS CRISTO SUPERSTAR
(Jesus Christ Superstar)
DIREÇÃO Norman Jewison
ELENCO Ted Neeley, Carl Anderson, Yvonne Elliman, Barry Dennen e Larry Marshall
PRODUÇÃO (EUA, 1973, 108 min.)
AVALIAÇÃO « (bom)

Comentários

Bella disse…
Assisti agora a pouco na televisão o musical "Jesus Christ Superstar- Live Arena Tour (2012)" e assim que terminou corri para o PC em busca de alguma análise, alguma crítica, alguma coisa que me ajudasse a organizar as ideias que estavam borbulhando na minha mente.
Primeiro, no final do seu texto você descreveu perfeitamente uma das principais noções que eu tirei do musical- tudo bem que era uma reflexão do filme, mas acho que dá para associar os dois no geral-. A de que ele nos chama a observar que as pessoas que conviveram com Jesus não são só personagens nas nossas bíblias, mas que foram pessoas, seres humanos tão confusos e complexos como nós.
Sou católica, e foi um pouquinho controverso assistir o musical no começo, sabe? As minhas ideias tão incrustadas de que o nome e a história de Jesus não é algo com o qual se brinque e tals. Mas o negócio é que esse filme que você assistiu e o musical que eu vi não são brincadeiras, mas reflexões, interpretações.
Nossa, é meio desconcertante parar para pensar que produções sem um objetivo de catequizar me levam a refletir não sobre minha fé, mas sobre o que há por trás dela e o que me leva ou leva outras pessoas a ela. Eu sei, isso aqui está bem confuso, porém é porque eu estou confusa.
Não sei, acho que ver um relato bíblico ambientado no meu contexto, de forma que me aproxima dos fatos e me traz um pouco mais de compreensão me deixa um pouco em xeque com aquilo que já me foi passado há anos e do qual eu nunca, vergonhosamente, parei para analisar.
De todo modo, gostei do que você escreveu, me ajudou a entender um pouco mais as minhas impressões com o musical. Só não sei se você conseguiu entender alguma linha desse meu comentário tão bagunçado. Mesmo assim, obrigada!
Unknown disse…
Pois eu assisti o filme em 1978,amei logo à primeira vista.Logo que pude comprei o disco que ainda hoje tenho. Acho uma obra maravilhosa em todos os aspectos.Um filme e obra músical da minha vida.

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