Cinquenta Tons de Cinza (2015)

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que filme é filme, livro é livro. Se o filme se quer adaptação de uma obra literária, é preciso bastar-se em si mesmo, ser autossuficiente, ser independente. Se para entender determinadas cenas, é preciso ter o livro sempre à mão, me pergunto: para quê fizeram o filme, então?

“Cinquenta Tons de Cinza” é adaptação do mega-seller erótico homônimo da escritora britânica E. L. James.

Jamie Dornan é Christian Gray, um jovem, sexy e bem-sucedido empresário. Dakota Johnson é Anastasia Steele, uma estudante de literatura inglesa, que ao substituir a amiga resfriada, vai entrevistar Gray para um trabalho da faculdade. O que não estava escrito no gibi é que Gray se interessa por Steele como submissa sexual.

A política da trama é simples. Gray quer a todo custo ter Steele sob seu domínio. Steele fica oscilando entre o medo e a curiosidade, até que o sentimentalismo aparece para fazer o filme numa ida e vinda que não se resolve.

“Cinquenta tons de cinza” possui momentos de comédia involuntária. As falas de Gray são de uma canastrice caricata e risível demais, além de ser ocas e patéticas. "Não faço amor, eu f... com força." Hã? Quando ele descobre que Steele é virgem, "ok, precisamos corrigir esse problema". E por aí vai.

Para um homem machista, Gray parece ensinar que as mulheres gostam de ser maltratadas. E, detalhe: que seja podre de rico.

Jamie Dornan mantém sempre a mesma cara de boneco de cera, inalterada, a mesma fala monótona como se fosse tedioso demais contracenar com Dakota Johnson. Nas cenas de sexo, vemos muito mais entrega em Dakota Johnson, embora sua personagem seja passiva e sem profundidade. Mas, mesmo assim, as cenas não convencem, e mostram um sadomasoquismo fingido, asséptico demais.

A diretora Sam Taylor-Johnson, pelo menos no quesito visual, evita o mau-gosto. Tem preferência pelo olhar da câmera no voyeur clássico, tudo sob a chancela da sugestão, do bom-comportamento. Abusa do nu feminino, dos traços delicados de Dakota Johnson, mas está decidida a filmar Dornan despido apenas da cintura para cima. Até porque, nas artes plásticas – de onde veio Taylor-Johnson – o nu masculino é agressivo, e, no entendimento do filme, desnecessário. Os namorados das fãs da saga, pelo menos, podem acompanhar suas musas sem esse tipo de constrangimento, de ver homem pelado na tela grande.

No entanto, o filme é uma história mal contada, a narrativa tropeça. É um filme feito para fãs. O roteiro é um rascunho, um primeiro tratamento. Há momentos que Steele parece segurar as rédeas da relação, esboçando uma inversão de papéis – e são esses momentos os melhores do longa. Porém, depois, o filme afunda na mesma pasmaceira, nos planos publicitários dos artigos de luxo, nas cenas que se arrastam.

Gray vai cercando Steele, seduzindo-a com presentes caros, e outros mimos de muitas cifras. Os elementos de sedução de Gray não se baseiam no que ele é, e sim no que ele tem. Ele é arrogante, seco, diz para Anastasia ficar longe dele, mas é ele que a fica seguindo, constrangendo-a, sufocando-a com o seu luxo. Gray lembra um garoto mimado e encastelado que coisifica pessoas, confundindo sexo e prazer com poder de compra.

É realmente estranho entender porque “Cinquenta Tons de Cinza” tenha feito o sucesso que fez, ainda mais junto às mulheres. De fato, há o forte símbolo do príncipe encantado, de “Bela e a Fera”, da mulher que se emancipa por meio de um homem que está além e acima do seu meio, da sua natureza – uma perspectiva machista, sem dúvida, que parece sobreviver e dividir espaço tranquilamente com as últimas conquistas do feminismo mundial. No entanto, Gray é misógino, despreza e trata a mulher como objeto, e é estranho que justamente esse personagem seja tão fascinante perante o público feminino. Embora Anastasia possua uma trêmula força moral e um anêmico autodomínio.

O plot de “Cinquenta Tons de Cinza” é praticamente o mesmo de “Crepúsculo”. Aliás, a própria E. L. James já falou várias vezes que seu livro começou como uma “fanfic” erótica da saga de Stephanie Meyer. De um lado, a garota sonsa, atrapalhada, insegura; do outro, o monstro misterioso, fascinante e perigoso, às vezes esquivo, às vezes perseguidor. Até que esses dois seres improváveis se esbarram, e nasce daí um relacionamento tortuoso.


O mal de “Cinquenta Tons de Cinza” é sempre se parecer um filme em cima do muro, indeciso, um “enlatado” incapaz de fazer envolver seu público. É um romance sem amor, é sexo sem paixão, é sadomasoquismo sem entrega, é um pornô conservador, é uma garota romântica, mas patética, é um megaempresário dominador que não transmite segurança – personagens perturbados e em zonas de conforto. Assistir “Cinquenta Tons de Cinza” é como tomar uma dose de conhaque sem álcool.

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