A Separação

Um grande filme do cinema iraniano

Saí do Reserva Cultural com muitas perguntas na cabeça, na noite cinzenta do aniversário de São Paulo. A única certeza que eu tinha naquele momento é que acabara de ver um filme incomum, de roteiro excelente.

Confesso que tanto eu quanto a maioria do grande público compartilhava uma espécie de preconceito sobre o cinema iraniano. O que não é sem explicação, já que muitos filmes de lá que chegam até nós são muito alegóricos, e lentos.



Tanto porque eles utilizam a alegoria, o recurso simbólico, a linguagem "cifrada" para driblarem a forte censura do regime iraniano, quanto porque a gente cresceu assistindo a filmes que escondem pouca coisa nas entrelinhas: os blockbusters da Sessão da Tarde...

"A Separação" surpreendeu muita gente. O Globo de Ouro para melhor filme estrangeiro foi, em partes, o grande responsável para colocar a película de Asghar Farhadi na rota dos cinemas cults do mundo inteiro. Sem contar o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Mas o filme tem seus méritos, e são grandes méritos. A começar pelo ritmo da trama.

Poderíamos resumir "A Separação", após uma espiada ligeira, como um grande "barraco". É um jogo de desentendimentos que vai crescendo, tomando proporções cada vez maiores.

Quando o filme começa, temos a impressão que muitas águas já rolaram por debaixo da ponte. Um típico casal de classe média iraniana apresentam as razões do divórcio a um juiz. Simin (Leila Hatami) quer encontrar condições de vida melhores para sua filha mudando para o exterior, ao passo que o marido Nader (Peyman Moadi) não quer acompanhá-la, pois tem um pai com Alzheimer que necessita de cuidados. E a filha, apegada ao pai, fica com ele. E a mãe, sem a filha, não sai do Irã.



O Irã atualmente é uma república islâmica, de democracia frágil, que tem levantado sérias discussões e polêmicas sobre direitos humanos na comunidade internacional. Sair do país é, pelo menos o que leva a crer o filme e as chamadas nos noticiários, um desejo de muitos iranianos.

Embora tratando de questões domésticas, "A Separação" é feita de reviravoltas que desembocam sempre em questões culturais, religiosas e políticas.

Quando a empregada de Nader, a Razieh (Sareh Bayat) precisa ligar para alguém, e perguntar se limpar o pai doente e senil de seu patrão é... pecado, isso, para uma mente ocidental, pode parecer um sintoma de sociedade "atrasada" se comparada com os nossos valores laicos.

Para a cultura islâmica, o filme funciona como poderosa crônica, pois uma mulher não pode tocar um homem, se este não for o seu marido. Mas entra a circunstância da doença, da senilidade, da falta de julgamento próprio do enfermo e do seu estado que pede ajuda.

O que vale mais mais? Ajudar ao próximo ou ficar bem com meus valores religiosos, se essas duas variáveis são imiscíveis e dotadas de exclusivismo?



Veja que genial: o problema é simples, mas envolve uma quantidade gigantesca de leituras, e valores antagônicos. Tudo bem, o telefonema dá sinal verde para Razieh. Mas, aí, meio que piora a situação: é dependendo de uma voz do outro lado da linha que se decide ajuda a um idoso com Alzheimer?

É impossível ter chegado nesta parte e não ter enxergado um pedacinho de política que seja. É claro que são suposições. O filme em si procura ser um retrato da vida iraniana, uma crônica de problemas familiares, questões com a cultura e com as instituições iranianas. Não há uma "bandeira ideológica" do diretor.

Porém, mais que lidar com picuinhas confinadas em uma região geográfica e contexto social bem definidos, os temas abordados são universais. Tanto a criança que morreu no ventre de Razieh quanto o velho inválido podem ser faces da mesma moeda de uma discussão sobre o valor da vida e questões éticas e morais. É pouco? Podemos piorar um pouquinho mais, e ver o grande impasse que nós vivemos aqui no Brasil ao debater o aborto e a eutanásia.

E do dinheiro que sumiu do quarto de Nader? E por causa disso ele acusou Razieh de roubo. Mas as circunstâncias com que tudo aconteceu deixaram Razieh de xador justo.

Ela roubou ou não roubou? - é uma pergunta que tem ares semelhantes à traição de Capitu. O filme não resolve esse problema, como não resolve a maioria dos problemas apresentados, para não dizer todos.

Tanto Razieh tenha de fato roubado, e sustentado a mentira de sua inocência, quanto ela é de fato inocente, mas o sumiço da grana foi uma coisa forçada de Nader para demiti-la de uma vez, e não pagá-la. Se você assistiu, lembra? Todos reclamam do salário baixo para o trabalho oferecido por Nader, e ele fala que é o que pode pagar. Mão-de-vaca? Não sei, ele mora na casa do pai, e cuida dele, não deve ser um cara de grandes posses. Não lembro de ver Nader trabalhando. E é a ex-mulher Simin que paga sua fiança, na ocasião de sua prisão "preventiva".

A própria pista para entender o filme está em suas cenas iniciais. O casal apresentando suas razões para um juiz invisível. O casal olha para a objetiva da câmera, e é-nos dado o papel incômodo de ver sob os olhos do juiz. Ou seja, quem assiste o filme meio que julga o que lá se passa.

Se é óbvio afirmar que o sentido de um filme só se completa na cabeça de quem o assiste, em "A Separação" esta afirmação tem um poder extraordinário. A riqueza de material para discussões é grandiosa.



O que se pode dizer, no entanto, sem devaneios e suposições (que o tom alegórico do filme permite que a gente faça), é que "A Separação" é um filme simples em matéria de recursos, cuja força extraordinária está no roteiro.

Seus personagens são complexos, até mesmo contraditórios, de uma humanidade impressionante. Começando do "nada" e terminando com muitas pontas soltas, o filme soa até que honesto em ser um olho clínico mas não direcionar perguntas nem pincelar respostas, o que é pior.

"A Separação", com toda essa sua força, conseguiu a façanha surreal de agradar o público, a crítica e... até mesmo o regime iraniano. Eu, particularmente fiquei surpreso com o tamanho da fila no Reserva Cultural, as sessões lotadas, ingressos esgotados... por um filme iraniano.

E é um forte candidato a empalmar o Oscar tanto de melhor filme estrangeiro quanto de melhor roteiro original.

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