A psicoacústica da válvula

Em 1906, a invenção da válvula eletrônica por Lee De Forest (1873-1961) significou o nascimento da Eletrônica propriamente dita e foi a grande responsável pelo aparecimento de um sem número de grandes invenções, que modificaram substanciosamente a vida no mundo moderno.

Embora a válvula eletrônica (ou válvulas termoiônicas na maioria das literaturas técnicas) tenha sido superada e destronada desde os anos 1950 pelo transístor, ela ainda é produzida e consumida em todo o mundo.

A válvula foi a grande responsável para a popularização do rádio, tornando-o rapidamente no primeiro grande meio de comunicação em massa, durante a Segunda Guerra Mundial. Esse seu grande momento, conhecido como “A Era do Rádio”, impulsionou o crescimento da música popular como artigo de consumo, dando novos contornos à indústria cultural. Em um conhecido filme nostálgico da década de 801 do diretor Woody Allen, há um retrato interessante dessa época de grande efervescência no mundo da música.



Em se tratando de Brasil, sobre o boom de sons populares identificados às raízes nacionais nos primórdios de nossa indústria fonográfica, o conhecido historiador e crítico da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão, comenta:

A expansão dessa produção de gêneros de música de sabor brasileiro destinados às cidades (porque no campo as eletrolas constituíam um luxo dado a muito poucos) foi favorecida logo em inícios da década de 1930 pelo aparecimento dos rádios providos de válvulas elétricas de amplificação, que permitiam uma recepção muito mais clara, através de alto-falantes. A novidade viria permitir, aliás, o estabelecimento de uma tão grande intimidade entre a fonte emissora e seu público, que o solene tratamento radiofônico inicial de 'senhores ouvintes', seria imediatamente substituído pelos locutores para o efusivo 'amigos ouvintes'.” (TINHORÃO, 1998, p. 298) (Grifo nosso).

Com o avanço da tecnologia e o aprimoramento dos equipamentos sonoros, o uso das válvulas, nos últimos anos, não desapareceu. Mesmo diante de suas desvantagens como o tamanho, consumo de energia e incapacidade de lidar com altas frequências, a presença das válvulas é notada facilmente em microfones, pedais, e principalmente em amplificadores de som. Esses amplificadores, hoje, reproduzindo projetos populares nos anos 1930 aos 1960-70, têm escala comercial extremamente reduzida, quando não são feitos de modo amador.

Esses amplificadores de áudio valvulados são utilizados em aparelhos de som de alta fidelidade, conhecidos como high end ou utilizados como amplificadores para instrumentos, em especial guitarras elétricas. Desde o surgimento dos amplificadores transistorizados e dos circuitos com amplificadores operacionais até os dias atuais, músicos e outros apaixonados por áudio consideram que o som dos valvulados possuem qualidade superior, afirmação essa que não tem deixado de gerar uma certa controvérsia.

Eles não abrem mão dos antigos projetos, sinalizando até que eles sejam – até o dia de hoje – insuperáveis, principalmente para funcionar como “gerador de timbre” em guitarras. Essa talvez seja a principal razão para que as válvulas ainda tenham espaço considerável no mundo eletrônico atual. E talvez isso explique em partes o preço caríssimo desses equipamentos, tornando-os símbolos de qualidade e de distinção.

É certo que termos como “superior” e “inferior” são relativos. E os parâmetros utilizados para esse tipo de julgamento são mais complexos do que aparentam, tornando o assunto numa celeuma interminável.

Conforme sinalizou Nicolau Leal Werneck:

Argumenta-se, por exemplo, que amplificadores com circuitos valvulados soam de um jeito, transistorizados de outro, e ainda que circuitos com amplificadores operacionais e circuitos integrados também soam de outra forma.
Algumas outras disputas históricas são entre as guitarras de marcas Fender versus Gibson, e a contenda entre o CD e o vinil, sem contar a disputa inicial entre o fonógrafo e a própria fonte original do sinal. Não é raro encontrar nestes debates argumentações baseadas de fato em conceitos técnicos precisos, como a existência de pequenas curvas de distorção e filtros no caminho do sinal, e diferentes formas de surgimento de ruído no sistema. Mas é difícil encontrar afinal medições precisas destas características e comparações entre os efeitos causados por estas diferenças.” (WERNECK, 2007, p. 22).

Caso semelhante que ocorre com os discos de vinil, a válvula eletrônica constitui atualmente um curioso fenômeno, pois mesmo em plena era da microeletrônica, ela consegue gerar fascínio principalmente para a geração que não viveu sob seu “reinado”. É fácil constatar na grande quantidade de artigos e postagens na internet o interesse e a supervalorização desse componente, mesmo diante da pobreza na moderna literatura técnica sobre esse assunto.

Em contrapartida, torna-se cada vez mais confuso entender se essa sobrevivência vigorosa da válvula no mundo do áudio atual seja de fato uma “superioridade” meramente técnica na amplificação de sinal em relação aos amplificadores modernos ou se essa sua supervalorização seja apenas uma espécie de reflexo cultural, estético ou mesmo acústico, até porque ela está intimamente relacionada com a música, conforme já tivemos ocasião de comentar.

O uso da válvula pode, dentro desse contexto, representar uma forma de atitude conservadora ou reacionária tanto por parte do músico quanto por parte do ouvinte, como meio de reproduzir “aquele som” dos grandes ídolos do passado. Som esse que chegou até hoje gravado com os defeitos e as qualidades dos equipamentos valvulados, e que, por várias razões, se tornaram referências clássicas – e até certo ponto discutíveis – de originalidade e de personalidade.

Porque o mais curioso a ser notado é que a expressiva quantidade dos equipamentos valvulados são utilizados em concertos de rock, de jazz e R & B, principalmente em bandas que se preocupam com uma estética retrô, vintage. Seu uso não é generalizado para todos os tipos de músicos. Mas é um uso muito forte, dentro dessas “tribos musicais”, situação essa que não pode ser explicada apenas como mera “vassalagem musical” a um tipo de som de tecnologia “superada”.

A válvula eletrônica é uma peça – embora não seja a única – dentro de uma gigante “campanha” a favor do som analógico. Não é raro haver notícias de bandas, músicos e artistas contemporâneos que utilizam e defendem sistematicamente os equipamentos analógicos para construir a sua sonoridade.

Produzido por Moby e mixado por Ken Thomas (que trabalhou com desde David Bowie e Queen até Sigur Ros e M83), Destroyed foi gravado com equipamentos analógicos de ótima qualidade e mixado em uma mesa Neve, de 1972, que veio de Abbey Road.”2

O músico, compositor e cantor Lobão, em uma entrevista concedida à revista TRIP ( volume 9, n° 45, novembro de 1995), reflete isso de uma maneira mais contundente:

“[...] É fundamental pra gente poder entender e poder carregar pra modernidade certos fundamentos que deixam a nossa contemporaneidade capenga. Por isso que o nome do meu disco é Nostalgia da Modernidade e a capa é uma válvula. Hoje em dia, tá todo mundo dizendo que a válvula é o grande barato. Eu gravei num estúdio lá em Los Angeles, que fez a sonorização do Batman, onde já gravou Madonna, Traveling Wilburys... A mesa de som é um foguete espacial, mas a grande atração são os pré-amplificadores valvulados que gravaram o Leão da Metro, nos anos 50. Aquilo custa milhares de dólares e é o que dá som que todo mundo quer.” (Grifos nossos).

Diante da complexidade do tema, o ideal é colocar em cena um ramo da Psicofísica chamada Psicoacústica, que estuda a percepção subjetiva das qualidades (características) do som: intensidade, tom e timbre. Estas qualidades ou características do som estão, por sua vez, determinadas pelos próprios parâmetros do som, principalmente, frequência e amplitude. Nas palavras de Juan G. Roederer:

“Como a percepção da música está essencialmente baseada em processos de informações acústicas, o maior ou menor grau de complexidade de identificação de uma mensagem sonora, o grau de sucesso nas operações de previsão que são realizadas pelo cérebro para lançar esse processo de identificação e o tipo de associações invocadas por comparação com informação armazenada de experiências anteriores podem, conjuntamente, ser a “causa” essencial das sensações musicais invocadas por uma certa mensagem musical. Se isso for verdade, deve ser bastante óbvio que tanto os mecanismos neurais inatos (operações de processamento primário) quanto o condicionamento cultural (mensagens armazenadas e operações de processamento aprendidas) devem determinar nossa resposta comportamental e estética à música.” (ROEDERER, 2002, p. 34)

Jourdain complementa:

“[...] O sentido da audição tem 300 milhões de anos. Música complexa existe apenas há um centésimo de milésimo desse período. O que nossos cérebros aprenderam a fazer para si mesmos, em tempo tão curto? O que torna belo o gemido distante de um oboé? Por que um acorde é "feliz", outro "triste", outro "angustiado"? Como podem sons que são um banquete para alguns ouvidos serem uma refeição enjoativa para outros? Por que alguns indivíduos são devastados pela música, enquanto outros permanecem indiferentes? E como é que, de bilhões de cérebros que já conheceram e apreciaram música, apenas um punhado foi capaz de inventar a música do êxtase?
Não se pode dizer que estas perguntas sejam novas. Nós as encontramos em Platão, Kant, Nietzsche. Mas foi apenas por volta do século passado que os cientistas levaram a música para seus laboratórios. Primeiro, veio a acústica, ciência do som em si; depois, a psicoacústica, o estudo de como as mentes percebem o som; e depois a psicoacústica musical, uma disciplina ampla, que examina todos os aspectos da percepção e do desempenho musicais.” (JOURDAIN, 1998, p. 13)

O que deve ser notado, porém, é que a válvula eletrônica ainda possui força considerável na “cultura eletrônica”, hoje. Em uma época onde há fortemente o som digital e o download como as variáveis revolucionárias na tecnologia do áudio.

BIBLIOGRAFIA
CAMILO, Jones Clemente - “Análise Comparativa das Distorções Harmônicas em Amplificadores Valvulados e Transistorizados para Áudio” - Pesquisa de Regime de Iniciação Científica do Centro de Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu, Orientador: Prof. Dr. Angelo Eduardo Battistini Marques, 2003.
HAMM, Russell O. "Tubes versus Transistors - Is there an audible difference?" - JOURNAL OF THE AUDIO ENGINEERING SOCIETY, volume 21, número 4, maio de 1973, pp 267-273.
JOURDAIN, Robert. - "Música, Cérebro e Êxtase", Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1998.
LEVITIN, Daniel J. - "A Música no seu cérebro : a ciência de uma obsessão humana", Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.
ROEDERER, Juan G. - Introdução à Física e Psicofísica da Música”, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002
TINHORÃO, José Ramos - "História Social da Música Popular Brasileira", Editora 34, São Paulo, 1998.
WERNECK, Nicolau Leal - "Análise da distorção musical de guitarras elétricas" - Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Engenharia Elétrica. Área de concentração: AC—Eletrônica, Microeletrônica e Optoeletrônica, UNICAMP, Campinas, 2007

NOTAS
1“A Era do Rádio”, de 1987, dos estúdios MGM.
2Moby é músico nova-iorquino. A matéria é sobre o lançamento do seu álbum Destroyed: “Novo de Moby composto em quartos de hotel”, datada de 18 de maio de 2011, no site http://www.dropmusic.com.br/index.php/ultimas-noticias/5178-novo-de-moby-composto-em-quartos-de-hotel (visitado em 30/05/2011). Abbey Road é o mais famoso estúdio londrino, fundado em 1931 pela EMI, onde gravaram The Beatles, Pink Floyd e Duran Duran.

Comentários

Anônimo disse…
parabéns amigo. Deus abençoe seus planos.
Sds, Jones Clemente Camilo

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