Capitães da Areia (2011)


Neta de Jorge Amado homenageia centenário do avô com certa insegurança técnica e coragem fabulosa

Bahia, década de 30. Debaixo dos trapiches vivem e se organizam um grupo de crianças de rua, ladrões por excelência, autodenominadas Capitães da Areia. Vivendo precocemente os prazeres da noite baiana, e procurados pela Polícia, os Capitães da Areia recebem uma espécie de compreensão e apoio por parte da comunidade, representados pelas pessoas como o padre José Pedro, o capoeira Querido de Deus, os comerciantes, a mãe-de-santo, etc.

Cecília Amado, a diretora de seu longa de estreia, é neta do autor do romance homônimo, o nosso sempre lembrado Jorge Amado (1912-2001). Era de se esperar que o filme transpusesse com fidelidade o lirismo, a densidade, a poesia e a humanidade do mais popular dos nossos escritores. Mas não. Embora a diretora use e abuse de efeitos estilísticos para conferir ao longa um tratamento de poesia visual (o que, em alguns momentos, ela acerta), o problema nasce no roteiro.

O livro "Capitães da Areia" foi publicado pela primeira vez em 1937, primeiro ano do Estado Novo de Getúlio Vargas. Por trás da Bahia pulsante e mística de suas páginas, há passagens que fortemente denunciam a posição política esquerdista do autor. Tudo bem que quase a totalidade dessa atmosfera político-ideológica foi suprimida do filme, o que soa compreensível. No entanto, a sensação que passa é que o filme não foi capaz de desenvolver todos os personagens como deveria. Em outras palavras, o universo ao mesmo tempo mágico e intenso de Jorge Amado é transplantado para as telonas com uma superficialidade tal que pode atrair as simpatias do grande público, mas deixa um vazio grande para quem leu o livro e se apaixonou pela alma simples daquele grupo de crianças de rua.

O livro faz jus ao título, e conta caso a caso de cada componente, de cada Capitão da Areia. É uma colcha de micro-histórias primorosamente costurados, linhas paralelas de ação que se tocam, que se alargam, se complementam. Mas no filme, parece que cada pequena peripécia de um capitão da areia é uma ação flutuante na estrutura narrativa do roteiro. Personagens instigantes do livro foram tratados de um modo ligeiro e diluído, como é o caso de Sem-Pernas, do místico Pirulito, enfim. É complicado entender como um garoto de rua se torna filho de patrões, com cabelo penteado de banda e roupinha de marinheiro, ao menos que alguém tenha lido o livro. E é mais estranho ainda achar lógica nas lágrimas de Sem-Pernas na noite que antecede o golpe. É engraçado. O filme passa de largo de várias cenas literárias para tornar a obra mais simples para o grande público, e coloca cenas que só fazem sentido para quem está familiarizado com o universo do livro. E tudo depois é fatalmente engolido para superdimensionar o romance entre Pedro Bala e a doce e melancólica Dora. Que é, no filme, a situação com melhor tratamento.

Há algum desconforto nos atores-mirins. Há momentos que eles são naturais, e há outros que são extremamente artificiais. Tanto a "gramática" do longa quanto sua filosofia de trabalho, a Cecília Amado pegou da aclamada série "Cidade dos Homens", da Rede Globo, na qual ela trabalhou como assistente de direção. Laranjinha e Acerola passeiam translucidamente aqui e ali. Pois o fato é que o próprio filme tem uma natureza similar com a série: crianças e adolescentes que descobrem a sexualidade, os vícios, o amor, num ambiente que oscila entre o doce e o amargo, a poesia e a realidade. E, como aconteceu na série, houve predileção por não-atores, jovens recrutados de ONG's que cuidam de crianças e adolescentes carentes.

Se o filme demonstra uma certa insegurança técnica de sua diretora, com uma superabundância de efeitos de câmera e de fotografia, não dá para se calar diante da coragem com que ela veste a camisa para homenagear com antecedência o centenário do avô. Mas esse calor de iniciante na cadeira de direção se esbarra com variáveis sempre difíceis de determinar.


Não quero apimentar a sempre clássica discussão sobre o peso que os patrocinadores têm na produção de um longa nacional, conforme podemos perceber com a presença maciça e asfixiante de empresas e logomarcas nos créditos iniciais dos nossos filmes. Mas com um cinema como nosso, sempre queixoso de sofrer eternos problemas com financiamento, distribuição, tratamento artístico... e público, "Capitães da Areia" deixa uma afirmação no ar. Seria um filme mais popular se a alma de Jorge Amado estivesse mais presente. Não somente no amor quente das baianas e nas noites de mistério do candomblé. Mas nos meninos que sofrem e vivem os dilemas da vida adulta... sob o olhar maternal de Iemanjá.

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