O fenômeno Harry Potter

Em dez anos, saga épica escreveu uma história de amor e ódio com o público colecionando cifras astronômicas e controvérsias monumentais

É inegável que a série de histórias fantásticas escrita pela britânica J. K. Rowling marcou profundamente a primeira década do nosso milênio. O universo criado por sua mente inflamou paixões, reconfigurou a literatura infanto-juvenil, acendeu discussões. Isso em escala mundial. Vendeu cerca de 500 milhões de exemplares, foi adaptado para as telonas, inspirou um parque temático e tornou sua criadora na mulher mais bem paga da história da literatura.



Todavia, tanto os livros quanto os filmes formam um todo orgânico irregular. Nos filmes era até coisa esperada, já que quatro diretores com estilos diferentes emprestaram seu talento na adaptação da história. Dentre eles, Alfonso Cuarón, le enfant terrible mexicano [de E Sua Mãe Também, 2001] e o diretor de TV, o inglês David Yates [A Garota da Cafeteria, 2005], foram talvez os únicos que conseguiram imprimir originalidade e dar um tom autoral. Mas é a própria série de livros que sofre com problemas de ritmo. Se por um lado as tramas e os personagens vão ficando cada vez mais complexos e o estilo de JKR vai se tornando cada vez mais sofisticado à medida que Harry Potter cresce, por outro lado a escritora vai se libertando aos poucos da estrutura rígida e formulaica que ela mesma se impôs para encadear o fluxo de acontecimentos - ou seja, o começo enfadonho na casa dos tios trouxas, a ida à Hogwarts, um caso estranho que acontece, as investigações policialescas, e o embate com alguma representação do Mal que coincide sempre com as vésperas do final do ano letivo... Ela também vai perdendo a capacidade de síntese ao atrelar um número cada vez maior de situações que evocam sequências cinematográficas. "Harry Potter e o Cálice de Fogo", por exemplo, lançado em inglês no dia 8 de julho de 2000, é o primeiro livro totalmente dentro desse "espírito blockbuster" (que não havia completamente nos três primeiros e contendo o dobro de páginas que a média entre eles). O quarto livro funciona como um divisor de águas, que, aliás, como intrigante curiosidade, foi lançado pouco depois de JKR ter vendido os direitos de filmagem à Warner Bros, por cerca de 1 milhão de libras...



O mérito de JKR, porém, é muito maior que essas derrapadas na história e cacoetes de estilo. Bebendo de fontes díspares como: literatura clássica, fantasia contemporânea [C.S. Lewis (1898-1963), R.R. Tolkien (1892-1973), Elizabeth Goudge (1900-1984), Edith Nesbit (1858-1924)] e contos policiais [Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), Agatha Christie (1890-1976)], contos de fada, o cinema comercial, história em quadrinhos, fatos do cotidiano londrino e muito envolvimento pessoal - sonhos, memórias e impressões -, a saga cresceu perseverantemente como uma colcha de retalhos primorosamente costurados. Mesmo possuindo uma qualidade oscilante, o universo de JKR é uma condensação de uma quantidade gigantesca de mitos, lendas, figuras e mundos fictícios, pulverizando-os e diluindo-os na lógica que rege o mundo inventado por ela. Isso torna tênue a linha que separa a intertextualidade e paráfrase, da mera apropriação desse tipo de propriedade intelectual, o que talvez seja razão dos muitos processos que a escritora responde por plágio.

No entanto, e isso é inegável, ela criou um mundo paralelo, com crenças, costumes e cultura próprios; em outras palavras, ela construiu uma sociedade que é diferente da nossa, está inserida na nossa e é paradoxalmente muito semelhante da nossa. Essa é, acima de qualquer controvérsia e suspeita, o seu maior mérito como escritora talentosa e original.

Harry Potter é uma série comercial por excelência. A incrível capacidade de JKR está justamente em reproduzir certas "constantes" do gosto popular. Há nos sete livros um acordo tácito firmemente estabelecido em não ultrapassar uma certa barreira de moral consensual. A própria narrativa - em terceira pessoa mas com consciência limitada - distancia a autora de seu mundo ficcional, fazendo o papel duplo de reforçar a verossimilhança e afastar do livro qualquer sugestão de panfletagem. Tendo tal fato em mente faz com que a estranha insistência dos religiosos em acusarem-na de apologia ao ocultismo pareça insólita e absurda.

Mas é essa preocupação de JKR em agradar tantos gregos quanto troianos que faz engessar toda a obra em um conservadorismo tal que impede haver aí qualquer ousadia, seja ela temática ou mesmo estilística. Há uma "assepsia" muito grande, limpando com furor alérgico da história tudo que possa parecer controverso, chocante, polêmico. Até mesmo o homossexualismo de Dumbledore é passado de uma maneira tão velada, tão ambígua e sutil, que não possui relevância ou impacto algum em todo o conjunto. Aliás, pareceu ser uma ação completamente fora de propósito a JKR dizer isso fora do universo literário e depois de terminada a série, que até parece uma tentativa marqueteira de polemizar um assunto moderno tendo o estrondoso sucesso dos livros como motivação.

A obra de JKR é estranha, e talvez seja essa sua outra grande qualidade. Se por um lado há tímidas pinceladas ou até mesmo consciente silêncio no que diz respeito a temas da adolescência contemporânea (sexo, drogas, homossexualismo, etc.), por outro existe até uma gravidade toda filosófica em abordar temas universais, como: o amor, a amizade, a autoconfiança, a família... e a morte. Se por um lado o leitor sofisticado não consiga levar a sério uma história povoada de feijõezinhos com gostos exóticos (como cera de ouvido e vômito), de Ford Anglia voando, de um chapéu cantor, de fotos que se movimentam e cartas que berram; por outro lado, o grande público não se sente muito à vontade com uma obra que retrata perdas familiares, a tortura, o assassinato, a opressão, a vertigem do poder, o medo, o desespero, a solidão... em tons agudos e numa franqueza impressionante. Se por um lado a série soa alienada/alienante por não refletir explicitamente temas próprios de sua época e sociedade, por outro ela consegue extravasar o espaço e o tempo, dada a riqueza de seus símbolos e o alcance das suas abordagens.



Houve até quem dissesse que a ideologia de Voldemort e de seus Comensais da Morte, embora inspirados no nazismo de Hitler, nos leva repetidas vezes a enxergar uma metáfora da xenofobia reinante na comunidade europeia... Enfim, é inegável que JKR construiu uma história de muitas leituras e conseguiu ser uma grande contadora de histórias, ofuscando estrelas literárias dos nossos dias e formando escola para outras que virão.

Mas o que deve ficar claro é que a consciente e estudada postura "demagógica" de JKR conseguiu subverter toda uma visão radicalizada que o público, a crítica especializada e o mercado editorial possuíam da literatura infanto-juvenil, tratando-a como uma forma menor de expressão. De modo nada uniforme, a série conseguiu balancear detalhes de fantasia inocente com grandes e complexas lições, que é possível que o grande público tenha passado despercebido. Com temas ásperos e personagens complicadas, demais até para um típico público juvenil acostumado com narrativas mais leves e a bem dizer sem sal. "Harry Potter e a Pedra Filosofal" (1997), o primeiro, é tecnicamente o mais bem-acabado livro de feição puramente infanto-juvenil, da série. O sexto, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe" (2005) é possivelmente o livro que melhor casou estilo com conteúdo, com a escrita fortemente poética, um estilo livre de fórmulas e um enredo maduro com seus lances de lirismo (como na narração da morte de Dumbledore) - uma literatura adulta, enfim.

Severo Snape é, ao meu ver, o mais complexo, fascinante e ambíguo personagem criado por JKR. Sua personalidade reúne tantas contradições, e seus contornos psicológicos são tão dúbios e, ao mesmo tempo, marcantes, que Snape é o único personagem que carrega uma humanidade absurdamente palpável e real na trama. Sua existência soa até que miraculosa numa obra tida por muitos erroneamente como subliterária e meramente comercial. Ele é uma zona indefinida entre os lados confusamente demarcados chamados de Bem e de Mal. Snape é o único personagem que foge do esquema maniqueísta no qual a série se construiu, tornado-se intrigante, enigmático e imprevisível.



E uma coisa que ninguém poderá se furtar é que Harry Potter foi concebido dentro da (e consumido pela) geração que cresceu com a linguagem ágil dos videogames, dos seriados de TV, das histórias em quadrinhos, da Internet e dos épicos do cinema-pipoca, da fantasia casada com os efeitos de computador. Essa geração que cresceu diante do apelo das imagens, da ação, da realidade virtual como nova alternativa de desbunde, de um mundo supertecnológico e ilusionista.

Ainda é cedo definir o que é Harry Potter na sociedade contemporânea. Ou antes, precisar o que foi e o que é Harry Potter para cada um de nós. Para muitos, é ainda um pedaço da infância e adolescência palpitando na estante ou nas telonas dos cinemas, e que as pessoas, ritualisticamente, não querem deixar morrer. Enfim. Diante de um público radicalizado e polarizado, que vai do fanático neurótico ao detrator xiita, JKR construiu uma espécie de mito contemporâneo, de rito de passagem, de arco entre a imaginação e a realidade, que sintetizou tantas controvérsias e impasses dos nossos dias. E mesmo com seu otimismo anestesiante e seu conservadorismo engessado, pode parecer absurdo, mas Harry Potter é o retrato em miniatura da nossa juventude. Para o bem ou para o mal.

Comentários

Rodrigo Mendes disse…
Acho a obra criativa. Além de me fazer o bem em 8 matinês, fez uma geração jovem a ler. É de grande valia.

Abs.
Rodrigo

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