O Cangaceiro (1953)

Restauração eterniza clássico dos estúdios Vera Cruz

Com justiça é um épico brasileiro de todos os tempos. É o primeiro grande sucesso de bilheteria do nosso cinema. Foi ele quem primeiro figurou nas telas de vários países do mundo. Só na França, ele ficou cinco anos em cartaz. Tido como a obra maior dos anos de ouro da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, O Cangaceiro é uma superprodução para época, realização mais famosa do seu diretor, Lima Barreto (1906-1982).



O filme inaugurou o gênero de "aventura de cangaço", que depois seria acompanhado por dezenas de outros similares e meras imitações. Conquistou o prêmio de melhor filme de aventuras no Festival de Cannes, no mesmo ano de 1953.

Tinha gente de peso envolvida. Rachel de Queiroz (1910-2003), grande escritora, primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, foi quem fez os diálogos do filme. Carybé (1911-1997), grande pintor, ilustrador e gravador argentino naturalizado brasileiro, foi quem fez os desenhos de produção (storyboard) e os cenários. Além dos astros da época como Alberto Ruschel (1918-1996), ator recém saído de Apassionata (1952), Ângela (1951) e Terra é sempre terra (1951), todos esses da Companhia Cinematográfica Vera Cruz; Marisa Prado (1930-1982) -  a musa do Tico Tico no Fubá (1952) -; o lendário Milton Ribeiro (1921-1972) e até mesmo uma ponta do fantástico Adoniran Barbosa (1910-1982), sambista, compositor e grande humorista nos tempos do rádio.

A trama é simples. O bando de cangaceiros liderado pelo Capitão Galdino (Milton Ribeiro) impede que os trabalhadores do Governo abram estrada no sertão, além de roubá-los. Esses cangaceiros mandam e desmandam naquelas terras de ninguém. Em seguida, eles invadem um pequeno vilarejo, saqueando e perseguindo seus moradores. A professora Olívia (Marisa Prado) é então raptada. O que ninguém esperava é que a professora desperta uma súbita paixão no cangaceiro Teodoro (Alberto Ruschel).

Paralelamente, um grupo de soldados voluntários se forma com o intuito de perseguir os cangaceiros. Os cangaceiros vivem a esmo pelo sertão, errantes. O filme é maravilhoso em retratar o cotidiano desses salteadores sertanejos, embora abuse nas tinturas pitorescas. Do código de honra, das razões que levaram esses homens a abraçarem a bandeira do cangaço. É mais do que certo que todo o filme é inspirando no lendário Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro Lampião (1898-1938). Que o Capitão Galdino também tenha Ferreira no nome não é mero acaso.



A maravilhosa canção “Mulher Rendeira” tem uma história curiosa. De autor desconhecido, é um antigo tema popular, muito cantado no sertão do tempo do cangaço. Existe a lenda que seu compositor fora o próprio Lampião. No filme, é cantada pela atriz Vanja Orico, com acompanhamento do grupo musical “Os Demônios da Garoa”. É interessante registrar que foi nas gravações do filme que o grupo conheceu Adoniran Barbosa.

A reviravolta da história acontece quando Teodoro decide "trair" seu bando, ajudando Olívia a escapar. Detalhe, ele escapa com a moça, deixando para trás o cangaço e uma namoradinha. Teodoro é um cara que teve infância educada por padres, daí talvez ele possuir um caráter envernizado por alguma ética. No filme, isso faz exalar um esquematismo moral, um maniqueísmo hollywoodiano. E o romance, o amor intenso, a idílica fuga a dois... tudo isso reforça mais as origens estilísticas do filme. Mas Teodoro vive uma complexidade galante, dividido entre o amor à Olívia e... seu amor à terra em que nasceu, o sertão.

O Cangaceiro segue a "gramática" épica dos faroestes americanos,  reunindo outros elementos como a composição de imagens dos épicos mexicanos e efeitos de montagem do cinema soviético - uma influência declarada do gênio Sergei Eisenstein (1898-1948).  Não é à toa que o filme é também conhecido como de estilo nordestern, qualificativo que não deixa de ter um quê de engraçado, pejorativo até. Glauber Rocha (1939-1981), com sua militância radical, em seu controvertido e apocalíptico livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (que nada mais é que uma coletânea de artigos escritos entre 1958 e 1963), comenta acertadamente que o filme é "Uma estória do tempo que havia cangaceiros, uma fábula romântica de exaltação à terra." O filme não pretende “estudar” a condição dos cangaceiros, nem esboçar seus porquês. Simplesmente os utilizam como boa desculpa para articular uma aventura com algum cheiro de brasilidade. E conseguem como poucos.

É possível afirmar que nenhum dos vinte e dois filmes feitos pela Companhia, em seus quase dez anos de existência, levou tanto a sério o slogan dos italianos Zampari (1898-1966) e Matarazzo Sobrinho (1898-1977), quanto o do polêmico diretor Victor de Lima Barreto. “Do planalto abençoado para as telas do mundo” refletia bem a megalomania da empresa, de atingir padrões internacionais. O Cangaceiro sintetizou o conceito de modo perfeito. Didático até.



É claro que assistir hoje demanda do espectador certa parcimônia, certa bondade para contextualizar, entender o filme como produto de sua época. É certo que os atores têm na maioria das vezes um desempenho distante, sem sal. O cenário apesar de pitoresco peca: foi filmado em São Paulo, procurando reproduzir o sertão nordestino. Não vemos um mandacaru sequer. A fala um tanto chocha – tentando ser dramática – de Teodoro no final pretende ter o mesmo triunfalismo da fala derradeira de “...E o vento levou”. Mas, gente, continua sendo um filme visionário, pelo menos em se tratando de artigo de indústria, “cinemão” procurando retratar temas nossos com a linguagem importada preponderantemente do cinema norte-americano, como recentemente fizeram “Tropa de Elite” e “Besouro”.

Vale a pena conferir. Agora em versão restaurada, realizada pela Cinemateca Brasileira, da Vera Cruz e da Films & Arts, com patrocínio e apoio cultural do PROAC – Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo e com apoio da Alexa Filmes e da JLS – Facilidades Sonoras. 

Formidável.

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