Tudo Bem (1978)
Arnaldo Jabor pinta com cores vibrantes um apartamento chamado Brasil
Um apartamento de classe média é o que basta para representar e conter as contradições de um Brasil gigantesco. Arnaldo Jabor, bebendo de fontes consagradas da nouvelle vague e tomando porres do neo-realismo italiano, constrói um filme imaginativo, de lirismo absurdo, bem-humorado, e acima de tudo crítico.
O antológico ator Paulo Gracindo (1911-1995) é Juarez Ramos Barata, um aposentado do IBGE, que revive as memórias do passado, com a amargura de ter vivido trinta anos de integridade. Nesta presente vida parada e sem prazeres, encantos e pecados, ele apela para os amigos do passado já falecidos: o integralista Alarico Sombra (Jorge Loredo, o impagável Zé Bonitinho), o dono de uma fábrica de macarrão Giulio Giacometti (Fernando Torres), o poeta verborrágico Penteado (Luiz Linhares). Juarez é sem sombras de dúvida a figura patética da decadência dos senhores da antiga casa-grande, e também do velho amargurado que superdimensiona o passado com tons idílicos e lamenta o que poderia ter sido e não foi.
Num apartamento cercado de Brasil - onde índios do Xingu e o canto do uirapuru tocam na vitrola, e discursos políticos apaixonados pipocam da máquina datilográfica - Juarez e sua família estão blindados, de certa maneira alienados do Brasil que realmente existe lá fora. Elvira (Fernanda Montenegro) é a esposa neurótica, que acredita piamente que o marido está a traindo, e imagina com nuance hollywoodiano todas as cenas do adultério. A filha deste estranho casal, Vera (Regina Casé), é uma baranga fútil, que vibra, sonha e sofre com os cafajestes com quem namora - uma típica patricinha: mentalidade oca e sonhos estreitos. Tem também o filho Zé Roberto (Luís Fernando Guimarães), um funcionário de carreira ascendente no funcionalismo público, cuja figura cheira a corrupção.
Em outras palavras, figuras patéticas mostradas com ares documentais em todas as suas fragilidades, preconceitos, ambições e paranoias.
É num tenso e dividido café da manhã dessa família excêntrica que as obras de reforma do apartamento começam. Ali dentro se inicia então o tráfego de um sem-número de tipos, tipos esses que encantam e chocam o pasteurizado lirismo nacionalista de Juarez - um lirismo cristalizado adquirido pelo excesso alienante de cultura. O peão que sofre a miséria mas ri das próprias desgraças; a puta que se faz de empregada experiente para engrossar os cobres; a outra empregada, mística, benzedeira-macumbeira, tida por muitos como uma santa...
O apartamento é de fato um Brasil.
O filme é construído com retratos, com alegorias. O som horrível e a imagem quase sempre escura não podem ser tratados como pontos de demérito para o filme, até porque precariedade assim era uma constante nos filmes da época Embrafilme. A câmera é estática, os enquadramentos chegam a ser cansativos, pois a própria performance dos atores - emotiva e exagerada em certos pontos - conferem um ar cênico, de teatro. Seria um defeito se Jabor não tivesse ao seu favor um elenco notável (talvez o melhor já reunido numa produção cinematográfica), e um enredo que necessitava tanto de potencial dramático, dirigido com uma forma competente. O filme assume em muitos pontos um DNA esgarçado do Maestro Fellini (1920-1993).
O filme é um retrato desconcertante do Brasil, confinado naquele pedaço de mundo que é o caótico apartamento de Juarez... A decadência da intelectualidade? A hipocrisia da classe mérdia? O sincretismo religioso? O gosto e o vício pela corrupção? O apartheid social? Os imigrantes nordestinos? A invasão do Capital Estrangeiro? A ressaca do Milagre Econômico? Tudo está lá, devidamente apresentado. Essas contradições, essas idiossincrasias, esse jogo complexo de crenças e descrenças, esse olhar clínico de uma época conturbada de nossa história (final dos anos 70), são tratados com bastante humor e uma poesia de certa forma exaltada, intensa, sentimental e colorida, como num desfile barroco. E de uma atualidade impressionante.
O cordão carnavalesco feito pela empregada e os operários, batucando a marmita e fazendo da vassoura com pano de chão uma porta-estandarte (menção à alegria irreverente do brasileiro?); a reforma caótica e conturbada do apartamento (ou da economia nacional no entra-e-sai de governo?); são pontos que, no filme, com uma beleza inebriante, nos convida a pensar, a refletir, a ver que nada mudou. E a hipocrisia dos donos da casa com a família de Piauí (José Dumont), que irá morar na rua por causa de despejo do barraco? Os donos da casa se compadecem, se emocionam por eles terem criança pequena, e oferecem parte do apartamento em reforma para a família de Piauí morar temporariamente. O incrível é que Juarez, Elvira, Vera e Zé Roberto se aborrecem depressa daqueles "entes estranhos" a perturbarem a estética da casa nascente, e chamam o síndico para, numa encenação forçada e já combinada, forçá-los a sair, sem que transpareça nisso a vontade dos donos. O choque é tamanho quando se vê que o despejo de fato aconteceu porque Juarez não antecipou o vale para Piauí pagar o aluguel. Hipocrisia forte.
Juarez talvez seja o mais sensível de todos para perceber que tudo ao seu redor soa como um ensaio dramático sobre o Nada. Acompanhado de seus três amigos fantasmas, tomando já por verdadeira a figura da amante lasciva imaginada pela neurose da mulher, Juarez tenta ainda abraçar utopias, memórias românticas, putas antigas, caindo na bebedeira. A morte (assassinato) do poeta Penteado é simbólica, e nada gratuita.
Nas relações humanas, resta esse estranho vácuo. O corpo caído na sala de visitas, e o sangue anônimo manchando o carpete.
Arnaldo Jabor viveu a segunda fase do Cinema Novo, tornando-se um dos seus mais notáveis expoentes. Tudo Bem é o primeiro capítulo de sua 'Trilogia de Apartamento', seguido por Eu Te Amo (1980) e Eu sei que vou te amar (1984). Barroco, lírico, absurdamente poético e grandiloquente, Tudo Bem é de fato uma obra-prima do cinema nacional de todos os tempos. Um musical excessivo, burlesco, verborrágico, à italiana, onde desfila um país de alma doente e mentalidade esquizofrênica. Uma construção consciente de um pensamento, como num cinema-ensaio, o qual não se traduz de forma alguma numa panfletagem moral ou política. Um pensamento que nada mais é que um esforço totalizante - diria hercúleo - de sintetizar esse Brasil horrível e maravilhoso, que sendo dois, é um só. Como um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem - como diria Nelson Rodrigues (1912-1980), uma forte e indelével influência em toda a película. Arnaldo Jabor também propõe um esforço plástico, estético de mediar tudo isso em um ritmo vigoroso.
Sem contar a ironia que permeia toda a película, a começar pelo próprio título. Tudo bem. Ufanismo? Otimismo de um Brasil que avança? Ou um 'tudo bem' de resignado, de quem engole sem reclamar, de um sem personalidade?
- 'Tudo bem' o cacete! - é a conclusão que nos acomete muito antes dos créditos.
Tudo Bem, 110 min, 1978.
Regina Casé, José Dumont, Stênio Garcia, Paulo Gracindo, Luiz Fernando Guimarães, Luiz Linhares, Jorge Loredo, Fernanda Montenegro, Zezé Motta, Paulo César Peréio, Maria Sílvia, Fernando Torres, Anselmo Vasconcelos, Wellington Botelho, Alvaro Freire
Direção: Arnaldo Jabor. Roteiro: Arnaldo Jabor e Leopoldo Serran
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