A Suprema Felicidade (2010)

Uma cebola numa salada de frutas.

Arnaldo Jabor tem um defeito, que para mim é uma qualidade excepcional: o exagero. Os maneirismos e os gestos largos no falar, com pompa, com paixão às próprias ideias. Na TV, no rádio, nos livros, nos jornais... em seus filmes.

É, eu sei que comecei indevidamente esta resenha.

Não convidei ninguém, nem esperei ser convidado. Terça-feira de garoa, depois de quase dois meses da estreia, resolvi de supetão ver o filme e matar a saudade do supercult cinema Belas-Artes, na Consolação. Sala de projeção praticamente vazia: eu e mais três seres viventes, ansiávamos todos prestigiar o tão esperado retorno de Jabor às telonas. Isso depois de mais de vinte anos afastado das câmeras como cineasta...

Confesso que achei as críticas feitas ao filme implacáveis demais, cruéis demais. Destilaram um sarcasmo venenoso contra o Arnaldo, muitas das vezes extrapolando até o escopo da mera crítica de cinema minimamente lúcida. Aliás, atacaram mais o diretor que o filme propriamente. E não só no que diz respeito aos críticos da blogosfera. Eu piamente acredito que a grande maioria desses críticos mordazes conhecem mais a veia polêmica e comentarista do Jabor que o seu passado cinematográfico. Por essa razão, é fácil explicar a frustração (ódio?) pelo filme, por esperarem dele um tratamento sobre política do pós-guerra mais denso e bombástico.

O que não existiu, muito menos se esboçou. O ponto culminante desses desentendimentos foi a controvérsia entre o lendário Eduardo Escorel e o Arnaldo Jabor. Escorel infelizmente erra feio em sua análise ao estreitar sua visão (e tentar reduzir o filme) naquela "engenharia cinematográfica" constante dos grandes produtos de massa, conforme podemos facilmente constatar (mesmo transudando das fartas gotas de empáfia do seu autor) no artigo "Extravagância Desconexa", publicado na revista Piauí. E Jabor, com seu tom dramático, irônico, em seu artigo-resposta "Patrulhas ideológicas e patrulhas pop" (publicado no jornal O Estado de São Paulo), fala abertamente o óbvio: o seu filme vai contra essas tendências.

E na boa: Escorel ainda não é nenhum gênio fodástico do cinema nacional para chamar Arnaldo Jabor de "diletante".

Na realidade, a linha narrativa do filme está pulverizada. Não há de fato uma "história", uma coisa delineada em começo, meio, fim; aquela coisa esquemática em protagonista, antagonista, conflito, clímax, pista, desfecho, conforme nos ensinam os grandes professores de roteiro de cinema. São as impressões de Paulinho - de certa forma voláteis, ora se afirmando ora se contraditando, de acordo com as circunstâncias e situações - que "amarram" as diversas cenas e blocos da narração. Paulinho na verdade é um personagem contemplativo, estático, diante de uma explosão de coisas que acontecem ao seu redor.

Sonhos que se quebram. Amores que vêm e que vão. Alegrias e tristezas. A vida.

A vida é personagem nesta nova película de Arnaldo Jabor. É por ela e através dela que se constrói uma estrutura que a crítica taxou de confusa, de desconexa, de desfocada. Uma estrutura onde as personagens se esbarram, vivem, caminham, somem... Logicamente, em se tratando da vida, Jabor não quis apenas fazer um recorte dela, mas esboçá-la em toda a sua grandeza, miséria, poesia, enfim, em todo o seu contexto generalizante, tentacular, macro. Não vi mal algum em fazer do filme algo fragmentário. Acho que foi a melhor forma de retratar a vida fora de esquemas óbvios, no vai-e-vem do tempo, das memórias, das pessoas que surgem do nada, marcam e desaparecem, existindo apenas o momento suficiente para deixar suas tatuagens indeléveis no mundo das lembranças. Como na vida. E uma vida enxergada por esse prisma do estranho jogo da memória. Há de fato um tom nostálgico, idílico, já preparado desde a apresentação da epígrafe, verso de Carlos Drummond de Andrade do poema "Memórias"(!). Esse Rio de Janeiro paradisíaco é construído na perspectiva de Paulinho, algo que digamos, alter ego de Jabor.


O filme é uma nota saudosista de Jabor, faço questão de frisar isso. Um olhar sobre o seu passado, pois o filme tem todo um quê de autobiográfico. Por partir de uma visão posterior, e, por conseguinte, distorcida e idealizada da infância e adolescência, o filme passou de largo de questões políticas e sociais da época, mostrando (para espanto de uma patrulha ideológica pretensamente de esquerda) as aventuras amorosas de um alienado do espírito de então. Alienação que também existiu. Ou vocês acham que de 1945 a 1956 (tempo abrangido pela história), só existiam militantes do partido comunista?

De fato, "A Suprema Felicidade" parece um acordo de pazes feito à classe média, à "burguesia" ferrenhamente criticada no belíssimo "Tudo Bem", de 1978. Comparando, o tom de crítica dilui-se drasticamente, para dar espaço a um sentimentalismo exaltado, um lirismo fantasioso e hiperbólico. Arnaldo Jabor não usa cinema aqui para exorcizar demônios, mas para encontrar anjos perdidos em alguma esquina do passado. As atuações fortes e teatrais, diálogos que bem parecem "monólogos assistidos", personagens que derramam recordações, enfim, todos os elementos que conferem à obra uma tonalidade barroca, uma intensidade dramática, fazem de "A Suprema Felicidade" um corpo estranho no nosso momento cinematográfico, de pós-Retomada. Suas crenças estéticas partem dos últimos suspiros do Cinema Novo no selo Embrafilme, com inscursões às chanchadas, aos musicais quase-hollywoodianos da Atlântida, à nudez rodrigueana.

Nostalgia estética, nostalgia no enredo. O filme inteiro é uma elegia ao passado. Há um incontestável tom reacionário na película. Mas tudo isso é um detalhe menor, se o superdimensionamento do caráter aleatório da vida for levado em conta. Nas entrelinhas do filme, é isso que cria conexão no aparente desconexo, que cria razões no aparente absurdo. E não só: desloca o eixo da narrativa da figura do Paulinho para a figura do avô Noel, esse ser emblemático que personifica muito bem esse pensamento, e que ainda ganha um brilho fantástico com a atuação marcante e magistral de Marco Nanini.

"A Suprema Felicidade" é um filme tocante, emocionante. Tangencia complexidades domésticas e questões sociais, como se para a trama isso não importasse, como protesto deliberado ao sensacionalismo realístico que imperou no nosso cinema dos últimos anos. Assim, o filme é uma autoinvestigação emocional de Arnaldo Jabor. Os personagens serão todos menores se não deixarem se levar por esta visão simples, idealizada da vida; por isso há um brilho mágico, um magnetismo feiticeiro no vô Noel. E é atraído por esse magnetismo que Paulinho tentará esboçar sua entrada tímida na vida. Será este brilho estranho que Paulinho tentará capturar.

Tentará capturar mais como fuga da vida apagada dos pais (Dan Stulbach e Mariana Lima), mais como fuga da educação moralista-repressora do colégio católico (se bem que os padres interpretados pelos eternos Ary Fontoura e Jorge Loredo até que soam cômicos), mais como fuga das controvérsias morais e éticas de uma época, este brilho buscado por Paulinho é o centro de uma pregação quase evangelística empregado por Jabor nas entrelinhas. Do simples viver, viver, viver.

Como filho órfão do cinema nacional da atualidade, "A Suprema Felicidade" veio como uma luz ou uma válvula de escape para um público cético e sufocado de realidade e violência. E veio transbordando otimismo: se a vida começa em guerra, sem sombras de dúvida, há de terminar em samba.

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