Dois olhos em um rosto ausente (trecho)
O MICRO... DESLIGADO HAVIA TEMPOS.
A mesma noite tranqüila, o calmo vento...
A lua namoradeira no céu...
Flavinha, de olhos no teto, pensava.
Perdia-se; encontrava-se para novamente se perder.
Estava... gostando do Rick?
Tal pensamento entrou no salão de seus pensamentos
como de supetão,
como policial federal que mete o pé à porta,
como tiro que rasga vidas,
como susto que cura soluço.
Estava GOSTANDO?
Parecia ridículo; parecia hilário,
rápido demais para um namoro fluir,
para um namoro acontecer...
- “Não!” – disse, audivelmente –
“Não se pode gostar de quem não se conhece muito bem.
Impossível!”
E foi deitar-se de barriga para baixo!
O tique-taque de seu relógio de pulso,
minúsculo,
soava monstramente amplificado, deitado ali na escrivaninha.
Bem como o ruído da cidade que entrava por sua janela.
Mas... o que dizer, Flavinha,
dessa sua vontade besta de sentir-se bem
à frente do micro?
Principalmente quando ele entra e conversa contigo, com aquele papo tão cheio de trocadilhos, aquela seriedade de encarar a vida, associado com o mesmo humor descompromissado, o que dizer? Você se sente bem, quer estender o papo, amarrar outras situações, dar um panorama das ansiedades que você carrega consigo, essa pressa de viver tudo intensamente, as coisas que você ama, que você adora fazer.
Ora, as palavras de Rick demonstravam
uma mente assaz espirituosa,
você sabe disso muito bem... não tem nem o que falar, mocinha.
- “EU NÃO GOSTO DELE!” – murmurou Flavinha, entredentes, já ficando nervosa.
E virou-se.
“Então você estuda no Colégio (...), legal!”
“Não sabia que você adora o filme ‘Shakespeare Apaixonado’!”
As conversas vinham truncadas em sua mente;
em pedaços;
em retalhos;
em gotas, como o remédio de sua mãe.
Não vinham em letras, na ortografia perfeita de Rick.
Vinham em um timbre inconfundivelmente masculino,
poderosamente lírico,
cheio das tonalidades,
no sobe-e-desce senoidal, sensual das canções.
Por instantes, escutou-o audivelmente (estaria ele ali?).
Mais por imaginação da insônia
do que por algum fenômeno paranormal.
Não, não era o Bono Vox falando-lhe
do pôster surrado tão próximo de sua janela.
Era da sua mente,
e da sua mente, a falta de dados
constituía a figura possível, provável,
exageradamente idealizada de Rick.
Pattinson, DiCaprio, Bana, Cruise...
De cada um Flavinha arrancava
um pedaço, um recorte, algo que detinha os seus olhos,
para sua mente construir seu quebra-cabeças,
o seu particular Frankenstein.
Seria alto? Seria bonito?
Seria branco? Seria negro?
Teria longos cabelos? Braços musculosos?
Tatuagem? Que idade ele tinha?
Seria... virgem?
Que espécie de gostos teria?
Que músicas?
Qual modo de vestir?
A cor preferida,
o filme preferido,
uma fé, relações com os pais, um time,
alguma incerta inclinação política?
Muitas coisas eram para se pensar
- talvez o extraordinário da situação;
talvez a persona ansiosa de Flavinha
(seriam os hormônios?)
a fixidez da idéia na modorrenta hora do sono.
E a visão tomou-lhe o pulso:
Daquele homem gentil e simpático, sempre mais velho...
Não como os garotos do colégio que mal sabiam amarrar o próprio tênis.
Aquele homem de cinza da barba bem-feita,
ou cavanhaque a coçar-lhe o pescoço,
palavras firmes e galanteio preciso.
De passeios noturnos, garrafas e cigarros,
a boca ardente, o beijo clássico tão Hollywood
e os lençóis enlouquecidos recebendo a virgindade perdida.
As idéias, pois, por fim, dissiparam,
sonhos, delírios, fantasias e louco desejo,
e quando o sol passou pelo caminho da sua janela,
Flavinha dormia docemente o sono dos justos,
decomposta em um mosaico de lençóis e travesseiros soltos,
a massa dos cabelos rebeldes,
a mão direita ao chão,
suave e etérea, imóvel, inerte,
como quem tenta segurar as vestimentas do Amor...
... em vão.
Comentários
Abraços, Fernando e parabéns cara, escreve muito bem!