'Avatar', uma crítica
Em 2009, enquanto o mundo tentava se reerguer da crise econômica, dois megalomaníacos marcaram o ano de uma maneira jamais vista. O primeiro marcou de modo triste, mas revitalizou toda a sua carreira brilhante, embora cercada de polêmicas. O segundo marcou de modo extasiado, no finzinho do ano, como se quisesse imprimir uma chave de ouro. E gerando as suas polêmicas.
Estou falando de Michael Jackson e James Cameron.
James Cameron, conhecido como King Of the World, sagrou-se como um cineasta visionário. E é de se pensar que, em 1977, quando assistiu Star Wars - A Última Esperança, ele era apenas um motorista de caminhão apaixonado por ficção científica e pelo lado técnico de cinema. Pois foi justamente a partir daí que ele tomou a decisão de se dedicar ao cinema. Incrível, né?
Houve sim outros trabalhos, mas, os que mais fortes se saltam à memória sejam, de fato, O Exterminador do Futuro (1 e 2) e Titanic. O sucesso foi tão estrondoso que é difícil pensar em Arnold Schwarzenegger sem associá-lo à figura do Exterminador (tanto é que na Califórnia, onde ele é atualmente governador, ele é chamado de Governator, uma espécie de trocadilho entre governador e exterminador, em inglês). E o que dizer do Leonardo DiCaprio? As revistas juvenis ficaram entulhadas com suas fotos e poses, na era Titanic, da mesma maneira que hoje o Robert Pattinson imprime sua cara vampiresca em mil bancas de jornal.
Se isso prova que esses filmes marcaram de modo praticamente indelével a carreira de Schwarzenegger e DiCaprio, é porque a explicação esteja em James Cameron assinando a direção e o roteiro (no caso do Exterminador, em parceria com Gale Anne Hurd, no primeiro e com William Wisher, no segundo).
Avatar é o seu mais novo trabalho, depois de praticamente 12 anos sem dar as caras. E é uma película vultuosa por natureza, pois além de abusar em efeitos especiais, consumiu não menos que US$ 500 milhões, filmada em quatro anos. Para se ter ideia da grandiosidade da empreitada, foi em 1995 que Cameron apresentou um esboço de Avatar e levou um "impossível" de sua equipe. Do muito chão que ele percorreu até a estreia mundial em 18 de dezembro do ano passado, ele conseguiu provar que era possível sim uma obra dessa grandeza.
No entanto, para fazer uma resenha minimamente lúcida, é preciso analisar Avatar em dois aspectos. O técnico e o narrativo.
Muitos críticos são entusiastas ao constatar o aspecto técnico do filme. O guru da DreamWorks, Jeffrey Katzenberg, chegou a afirmar que Avatar irá liderar a terceira revolução em cinema. A primeira, o som, no final da década de 20; a segunda, a cor, no final da década de 30 e só consolidada no final dos anos 50 e começo da década de 60; e a terceira: o cinema em 3D.
Não dá para negar que Avatar é de fato um marco na história do cinema. Os efeitos especiais formam aquilo que se convencionou chamar de "cereja do bolo" em Avatar. Ponto fortíssimo é a captura dos movimentos juntamente com a ambientação criada por computadores, de tal maneira que nós, plateia, não conseguimos distinguir o que é real do que não é. Se cinema é encarado como uma "fábrica de ilusões", Avatar eleva esse conceito a um outro patamar, coisa que é extremamente superdimensionada em salas de projeção 3D.
Os planos incrivelmente abertos da câmera, onde transborda toda a grandeza de Pandora, seus seres e luzes, plantas e acidentes geográficos, dão à fotografia um toque gigantesco de verossimilhança. Sem contar a grandeza escondida em seus mínimos detalhes, as linhas do rosto, expressões faciais sutis, e até mesmo o grande tabu em computação gráfica até pouco tempo, que era a absorção e reflexão da luz pela pele e a dinâmica de pelos e cabelos.
Há quem associe o gigantesco planeta Pandora ao nosso planeta Terra, e é de fato muito semelhante. Algo meio que a nossa Floresta Amazônica contendo um novo tipo de Jurassic Park. Há momentos que o nosso herói Jake Sully (Sam Worthington) se parece com um Tarzan extasiado em um mundo que explode vida.
Pois é analisando o aspecto narrativo dessa superprodução que constatamos o papel de conscientização ambiental que James Cameron emprega. Ao jornal Bild, ele próprio disse em entrevista: “Só temos uma Terra. Devemos nos dar conta de uma vez por todas que nosso planeta é um paraíso. Rodei ‘Avatar’ também para meus cinco filhos".
Até mesmo a Neytiri, personagem de Zoë Saldana, tem um quê de Pocahontas. O apelo à Natureza soa didático demais, e James Cameron assume assim o papel do bom moço que faz filme para toda a família.
Com isso, Avatar se firma como um filme contraditório. Uma contradição existe entre forma e conteúdo. Já falamos que como forma, Avatar lança uma nova técnica de cinema, efeitos especiais hipnóticos, um cinema dentro de um contexto supertecnológico e ilusionista. Porém, como conteúdo, Avatar é um convite aos primórdios da civilização. Estendendo a crítica de Amir Labaki, o qual ele encara Avatar como "o triunfo da infantilização", podemos afirmar que James Cameron propõe o triunfo da simplicidade e da contemplação da Natureza, como as antigas civilizações faziam. E é inquestionável que naquela época, a relação homem-natureza era muito mais saudável que hoje.
Quando os humanos invadem o planeta em busca do caríssimo supercondutor unobtanium, já conseguimos enxergar as múltiplas referências que Cameron flerta nessa megaprodução. A América saqueada pelos europeus; os EUA em busca do petróleo no Oriente Médio; as histórias de faroeste... Em todos esses capítulos da História, podemos constatar a religiosidade e muitas das vezes o misticismo que os donos dessas riquezas possuem, em contraste à ambição e à frieza com que as pessoas de fora chegam para saqueá-los. E é interessante que Avatar, como fábula, como ficção científica, procura condensar grandes capítulos da História em um filme acessível.
Há críticos mais pertinentes que veem uma inegável aproximação do roteiro de Avatar com os filmes "O Último dos Moicanos" e "Dança com Lobos", reforçando a cosmovisão indianista que os Na'vis (os seres azulados antropomórficos que habitam o planeta) ostentam do começo ao fim.
No entanto, o roteiro conduz os personagens por caminhos conhecidos. Em matéria de narrativa, nada há de novo. O romance aparentemente incompatível entre o ex-fuzileiro Jake e a bela Na'vi Neytiri já é um tema gasto. Aliás, é um tema que começa com Romeu e Julieta e se subdivide em centenas de outras obras, como é o caso de nossa já conhecida obra Crepúsculo.
Avatar é o projeto de pesquisas que os humanos fazem no planeta. Criando clones dos Na'vis, eles transferem suas mentes para esses clones, e se infiltram em Pandora. A meta é conhecer mais da cultura deles, e dar um status diplomático para a extração de unobtanium. O ex-fuzileiro Jake é paraplégico e vê nisso uma boa oportunidade de "ter" suas pernas de volta em um corpo ágil de 3,5 metros. A partir daí, vemos um herói, aparentemente desacreditado por causa de sua deficiência, galgar o posto de líder planetário, simplesmente porque além de acreditar em si mesmo, acreditou em Eywa, uma espécie de conceito panteísta da Natureza.
Maniqueísta? Ora, a obra tem os lados bem definidos. De um lado, temos os Na'vis tentando defender a sua casa. Do outro, a liderança dos humanos que quer dizimar os Na'vis para conquistar o unobtanium. Porém, o herói vive sua duplicidade, e isso dá complexidade às suas atitudes. Jake Sully não é um personagem esquemático como fazem crer muitas resenhas de meus amigos blogueiros.
No entanto, Avatar possui uma política simples, apesar do grandioso esforço técnico em mediar tudo isso. O aspecto técnico rompe barreiras, levando até mesmo a cineasta Suzana Amaral perguntar estupefata: "Cinema do futuro?". Indiscutível. Contudo, o roteiro faz um caminho inverso, um olhar para o passado, um convite para as origens. Um filme de duas mãos.
Pena que a balança não fique em equilíbrio. Pena que a história perca para as imagens. Ora, Cameron não é conhecido pela força dos roteiros. E esse fato deve ser decisivo naquela velha questão se Cameron superou ou não George Lucas, com esse novo trabalho. Pois foi devido a isso que muitos críticos saíram da sala de projeção aplaudindo um filme por causa dos efeitos inovadores, e não um filme que promovesse uma reflexão sobre a o homem e a natureza.
A tese defendida por Cameron de fato é ingênua, mas doce. Nos diz muito, como o sonho de um mundo melhor, cantada muitas vezes pelo outro megalomaníaco notável chamado Michael Jackson.
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