Aah (1953)
De todos os filmes de Raj Kapoor que já vi, este é o menos interessante.
Raj (Raj Kapoor) tem a alma de poeta, mas trabalha como engenheiro-chefe na construção de uma represa nos cafundós verdejantes da Índia. Seu pai acredita que chegou a hora de o filho se casar com Chandra (Vijayalaxmi), uma jovem escolhida pela mãe de Raj antes de falecer.
Chandra é uma moça perfeitamente integrada à vida moderna na cidade: tem aulas de tênis, de dança, sai de casa, se diverte. Por isso, não se anima nem um pouco com a ideia de se casar com alguém que vive isolado no meio do nada.
Estamos em uma Índia onde os casamentos são arranjados pelos pais, e os noivos não têm o direito de se conhecer pessoalmente antes das núpcias. Antes disso, podem se comunicar apenas por correspondência.
No entanto, mesmo sem conhecê-lo, Chandra despreza Raj desde o início, a ponto de permitir que Neelu (Nargis), sua irmã mais nova, se passe por ela ao responder às cartas de alta voltagem poética de Raj.
Neelu, é claro, acaba se apaixonando por ele.
Em uma das muitas peripécias do filme, Neelu e Raj se esbarram na vida real, sem saber que são as mesmas pessoas que trocam cartas apaixonadas. Aliás, desde as primeiras interações, Raj é extremamente rude com Neelu; por conta disso, ela passa a odiá-lo com todas as forças.
O contrário, porém, acontece com Raj. Ele sente uma atração inexplicável por Neelu, cujo nome desconhece. Em certo momento, Raj fica dividido: tem na mente a imagem idealizada de Chandra, construída a partir das cartas (que, na verdade, foram escritas por Neelu), mas seu coração se inclina para essa jovem semidesconhecida, a quem, paradoxalmente, ele sente um prazer quase cruel em destratar.
Quando Neelu finalmente percebe que o idiota grosseiro à sua frente é o mesmo que, com um lirismo afetuoso, correspondeu-se com ela, Raj aparenta tranquilidade — é como se já soubesse que a garota com quem agora entoa belas canções de amor é a mesma alma apaixonada das cartas. Como ele chega a essa conclusão?
Raj, porém, ainda acredita que ela seja Chandra.
No entanto, quando as coisas parecem se esclarecer e estão prestes a se resolver favoravelmente, eis que vem um duro golpe do destino: Raj está tuberculoso. Naquela época, quando alguém era diagnosticado com essa doença, praticamente recebia uma sentença de morte.
Sabendo que tem pouco tempo de vida, ele toma uma decisão drástica: por amor, quer que Neelu o odeie. Para quê? Para que ela o esqueça e se case com outro. Raj prefere destruir o amor de Neelu a permitir que ela tenha um matrimônio fugaz...
Esquisito, não?
Raj pensa em todos os detalhes: ele pede para que seu amigo, o Dr. Kailash (Pran), se case com Neelu. Sua atitude acaba envolvendo simultaneamente três pessoas além dele próprio. E para quê?
UMA MONSTRUOSIDADE NARRATIVA
Em Aah, os momentos de humor são incapazes de aliviar a atmosfera desesperadora. A trama do filme é complicada. Há muitas reviravoltas, nós, camadas, temas, questões. Mas quantidade não quer dizer qualidade, é bom frisar. Aqui, as coisas se mostram tumultuadas e pouco desenvolvidas.
Raj é um personagem vilanesco e problemático sob diversas perspectivas: ele é narcisista, infantil, paternalista. É masoquista ao se entregar ao sofrimento da doença e à aparente impossibilidade do amor, mas também sádico ao manipular os sentimentos de duas mulheres, além de apelar para a fidelidade do amigo, apenas para fazer valer sua visão — moral — de mundo.
Ele manda Neelu “calar a boca” várias vezes, o que já implica que sua perspectiva — masculina — é a única que vale.
Neste triângulo amoroso complicadíssimo, o amor anda de mãos dadas com a crueldade e o sofrimento.
A matriz básica do filme é Devdas (1917), romance muito popular do escritor bengali Sarat Chandra Chattopadhyay (1876-1938), nunca traduzido para o português. O filme reelabora diversos elementos da obra original: a doença como purificação, o triângulo amoroso torturado, o papel dramático da correspondência, a contraposição entre campo e cidade (um topos romântico por excelência) e, por fim, a cena em que o herói agonizante é levado de carroça até sua amada.
Aah não teve o sucesso esperado, mas provavelmente pavimentou o caminho para que, dois anos depois, Bimal Roy levasse sua versão de Devdas para a tela grande com muito sucesso, com Dilip Kumar no papel principal.
Nunca li o livro, mas vi o filme de Bimal Roy. Se a transposição do livro de Chattopadhyay para o cinema ocorreu sem flagrantes perdas de substância, podemos afirmar que Devdas — um herói fraco, atormentado por dois amores impossíveis e questões sociais irreconciliáveis — contrasta sobremaneira com Raj, um homem de personalidade transbordante e senso moral bem torto, que manipula os sentimentos de duas mulheres como se estivesse fazendo catecismo. Devdas foge do mundo, mas Raj quer apenas domar o mundo ao redor conforme suas convicções, como o engenheiro que doma a natureza através da técnica.
Raj é praticamente uma negação de Devdas.
No entanto, essa recriação de Devdas à imagem e semelhança de Raj Kapoor é infeliz, pois, ao deslocar várias premissas do romance, acabou deixando a trama com um aspecto desconjuntado. Se, em Devdas, tudo converge para um final nada feliz, em Aah a coisa degringola para um happy end forçado — acrescentado depois de o filme já estar pronto —, onde o amor, o campo, a saúde e o ideal romântico (Neelu) triunfam sobre o ódio, a cidade, a doença e o “realismo” duro de Raj.
Em outras palavras, Raj Kapoor saiu de Devdas, resvalou no nosso Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) e se perdeu em um terreno estranhíssimo — terreno esse que ele voltaria a explorar em Sangam (1964).
Tamanha abnegação, tamanha pregação ao (auto) sacrifício para que, no final, a felicidade inconvincente do casal esvaziasse tudo isso.
Aah, portanto, é um melodrama rocambolesco de cortar os pulsos, salpicado aqui e ali de humor, mas carente de certa “musculatura dramatúrgica”. Por essa razão, não atinge um impacto dramático nem um nível artístico comparável a clássicos como Awaara (1951), Shree 420 (1955) e Chori Chori (1956).
AAH (1953), do cineasta indiano Raja Nawathe
AVALIAÇÃO: «« ½ (regular)
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