O pai-de-santo italiano

Pai Ronaldo é uma das figuras mais lúcidas que eu já conheci. Alto, gordo, careca, com os seus inseparáveis óculos grossos de lente amarelada sobre o nariz pontudo, de passos vagarosos e um humor inconfundível, o Pai dividia a vida entre o trabalho pesado de mecânico no setor metroferroviário e a vocação de sacerdote de cultos afro-brasileiros. 

Quando o conheci, ele era um senhor de pele branquíssima e sobrenome italiano. 

Há uns bons anos, nós trabalhávamos juntos, cercados de peões chucros (como é de lei nesses ambientes) numa atmosfera eletrizada de comportamento passivo-agressivo, masculinidade tóxica, piadas sexuais e conversas desrespeitosas, vazias e repetitivas envolvendo trabalho e futebol. 

No entanto, as conversas que eu travava com o Pai numa pausa ou noutra eram verdadeiros respiros de inteligência no meio daquele miasma irrespirável. Ao nosso redor, vários seres sujos riam de nós e nos atacavam, sem conseguirem se afastar muito da situação de bicho. 

É claro, as coisas nem sempre foram assim. Desde muito cedo na minha vida, a educação evangélica havia me incutido a associar sempre os deuses da mitologia iorubá com as figuras bíblicas do Mal. 

Num primeiro momento, quando o conheci, tive aquele receio básico como quem se vê diante das forças aleatórias da Natureza. Ou diante de um xamã que é caprichoso e assustador ao mesmo tempo, tal qual o vento ou o mar. Mas, depois, a custo, deixando os preconceitos de lado, consegui desenvolver grandes e proveitosos diálogos com o mestre, aprendendo muito da sua sabedoria, digamos, singular. 

E percebi: muito do que ele falava transcendia a religião. 

Nunca me esqueço de quando ele me disse, certa vez, de uma mulher que havia chegado ao terreiro com a vida de pernas para o ar. Ela questionava o Pai por qual razão nem Deus nem os anjos a ajudavam. Pai Ronaldo, com a sua ironia bem característica, disse: “Mulher, ninguém vai te ajudar”. Ela arregalou os olhos, o pai-de-santo arrematou: ela é quem deveria ajudar a si própria. Quando estamos mal, a nossa frequência espiritual anda baixíssima e ficamos sozinhos numa espécie de “buraco”. Os anjos lá do Céu, por sua própria razão de ser, estão numa frequência bem mais alta. Para que um deles venha nos ajudar, ele terá de descer até esse “buraco”. E para descer até onde nós nos encontramos, ele terá de vibrar numa frequência cada vez menor. Ou seja, no final das contas, não será uma pessoa necessitando de ajuda, mas duas... 

Eu achei o raciocínio interessante. Tudo bem que um chato poderia problematizar com isso, empilhar colocações em contrário, como a da impossibilidade lógica de uma pessoa afundando na areia movediça se salvar apenas puxando os fios de cabelo do alto da cabeça. Todavia, Pai Ronaldo falava de algo diferente, não chegava a ser um tipo de fato de “areia movediça”. Ele continuou: “Você é quem deve se ajudar. Você precisa fazer aumentar a sua frequência espiritual, para que você saia desse buraco. Você se tira sozinho daí. Como? Pensando em coisas boas, indo em frente, procurando meios de sair dessa situação”. 

Não deixei de pensar no muito de psicologia prática por trás dessas palavras tão simples. Uma “terapia de trincheira” — que abre os olhos com uma clareza desconcertante. Parecia tudo ao mesmo tempo tão óbvio e iluminador... 

Mas o peão é feito à imagem e semelhança do Capiroto. É fogo porque, além da inclinação natural à inconveniência, o peão tem o péssimo hábito de transformar as coisas em humor. E o humor do peão está muito bem posicionado num limbo triste entre uma criança insolente e um idoso boca-suja. Pai Ronaldo, porém, levava tudo na esportiva, com uma leveza, com uma serenidade incrível. Não precisava convencer ninguém, não precisava ganhar like de ninguém — bastava ser. E tranquilo caminhava, a passos tardos, irradiando uma sabedoria ancestral enquanto fingia não escutar as pilhérias dos colegas ignorantes, colocando os colares enormes de contas multicoloridas sob o uniforme escuro de graxa e fuligem, aconselhando as senhorinhas da limpeza a enfrentarem os revezes da vida. 

Quando, numa conversa à toa, ele citou uma frase do teólogo e padre jesuíta francês Teilhard de Chardin (1881-1955) — um pensador cujo trabalho, na primeira metade do século XX, era basicamente amarrar as pontas soltas entre a ciência e a fé —, eu fiquei bastante impressionado. Pai Ronaldo não era um mero sacerdote naquela chave antiga, para o qual a religião é um circuito fechado e autossuficiente. Não. Ele parecia mais um estudioso multidisciplinar da religiosidade; na verdade, tudo era um intrincado sistema de vasos comunicantes. Pai Ronaldo era um tipo raro, alguém com vivência espiritual e um lastro de humanismo. Ele fazia, na prática, aquilo que eu, de certo modo, já intuía: a fé e a cultura não são como óleo e água. 

Eu sempre gostei de religião, mas como um observador distante. A minha relação com as coisas da religião se assemelha bastante a de uma pessoa apaixonada por música, que ama se debruçar sobre discos, gêneros, estilos, artistas e movimentos musicais, se contenta de ir a shows e concertos sem sentir a mínima vontade de pegar num instrumento e arrancar uma canção. 

Lidar com a religião sempre foi para mim uma coisa muito complicada. O irracional parece que sempre está lá, como um abismo chamando você para um mergulho. Quanto mais você quer encarar a coisa de um modo abstrato, mais a religião quer empurrar você para dentro do olho do furacão. Quanto mais você quer pensar sobre os conceitos, as narrativas, os símbolos e os arquétipos, mais a religião força você experimentar a fé para, se não resolver as próprias questões, pelo menos trocá-las por outras. Quanto mais você se contenta com a visão confortável a partir da porta, mais a religião quer pegar pelo seu pescoço, arrastar você para dentro e receber uma imposição de mãos, com os olhos fechados, repetindo mantras e rezas com gritos, lágrimas e salva de palmas. 

Pai Ronaldo, ao contrário de muitos religiosos, curandeiros e coaches, gostava da conversa, do diálogo, com paciência e generosidade. Se havia proselitismo, era sutil, e de modo algum era invasivo. Não havia nem indício daquele “cheiro ruim” de fanatismo e constrangimento, de sentimentalismo e agressividade que impregna a fala de qualquer seguidor chato. 

Pai Ronaldo era um purista, talvez um conservador, pois acreditava que a modernidade havia corrompido bastante a veia original da fé; tudo tinha entrado numa fúria diluidora. E nesse pensamento ele se mostrou acertado. Muita gente tem encarado as divindades como garçons superpoderosos que trazem os pedidos à frente dos outros mediante mimos, elogios e pequenas gorjetas. O universo da fé se transformara em uma religiosidade imediatista e ansiosa, uma espécie de microgestão do nosso dia-a-dia feita pelo divino, levando para o plano espiritual as lógicas comerciais de custo-benefício. Para essa gente, a nossa felicidade é obrigação dos deuses, fim de conversa.  

Por outro lado, eu nunca me senti muito atraído pela cosmovisão religiosa afro. Na minha ignorância, eu sempre achei — olhando de fora e baseando-se em tão poucas evidências — que a relação entre o bem e o mal é muito ambígua, cheia de zonas cinzentas e limites confusos. Talvez eu, seja por conformismo, seja por limitação, não estava disposto a realizar esse salto mental em matéria de complexidade. No cristianismo, as coisas soam mais “quadradas”, rigidamente demarcadas, mais fáceis de entender, e mesmo assim já ocorrem alguns ruídos. Imagina, então, no candomblé! 

Pai Ronaldo, é certo, me ajudou a entender alguns conceitos. A metáfora do rádio é genial. “Imagina o seguinte. Estou trabalhando lá no Japão. E aí te mando de presente um radinho de pilha. Quando você receber o aparelhinho e colocar as pilhas, quais rádios você vai escutar? As rádios japonesas? Não, né? Vai ouvir só a programação brasileira. Mais ou menos assim com a mediunidade. Os espíritas franceses estavam acostumados a conversar com espíritos de doutores, poetas, intelectuais. Gente ilustrada. Chegaram aqui, viram que a frequência era outra, ‘tocava’ os pretos-velhos sem diploma universitário”. 

E entre ensinamentos sobre os usos de ovos em despachos nos cemitérios, vídeos do YouTube de barracas girantes nas profundezas da África, críticas pesadas contra o teólogo umbandista Rubens Saraceni — “esse misturou tanta coisa que até se perdeu” —, Pai Ronaldo, com o capacete minúsculo em sua cabeça enorme, quebrava sem muito esforço o torque dos parafusos gigantescos do rodeiro do trem. 

E ele foi, dos poucos colegas, o que mais me incentivou a virar escritor profissional. 

E assim, não há um só dia em que eu não me depare com esses fanáticos monotemáticos cheios de certezas empedradas cobertas com cascas de machucado, e não me lembre do Pai Ronaldo com a sua espiritualidade tranquila, sem banner nem avisos de megafone. E é isso no final que permanece. Como disse o grande Teilhard de Chardin em uma de suas frases solares: 

“A religião inibe; a espiritualidade desinibe”.

São Paulo, 9 de março de 2021

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