VIZONTELE (2001)
Com a popularização do streaming, diversas cinematografias antes
inacessíveis acabam penetrando nas nossas casas com imensa facilidade. Isso é
ótimo, afinal, desde a tenra idade nós somos formados — de uma maneira
praticamente intensa e ininterrupta — pelo cinema comercial americano recente.
Ficamos viciados pelos seus temas, pelos seus andamentos, pelos seus estilos,
pelos seus símbolos e obsessões. Chegamos até ao ponto de tomarmos isso como
“régua” e, com ela, medimos o cinema do mundo inteiro e de todas as épocas.
Olhamos toda a sétima arte pelas lentes dos filmes hollywoodianos,
principalmente os que mais nos marcaram, ao invés de educarmos o nosso olhar
para novos temas, novos andamentos, novas linguagens.
Mas, graças à tecnologia, isso vem mudando. É realmente algo muito positivo,
por exemplo, ver esse tocante filme turco pela Netflix. A Netflix, que se
tornou sinônimo para tempo livre em casa, que virou o primeiro nome que se vem
à mente quando se indica algum filme ou série, cujo catálogo virou a principal
dieta cinematográfica de milhões de indivíduos (por mais que se faça a
acusação de que todo mundo, de repente, anda vendo as mesmas coisas). E a
Turquia, tal como a Índia, o México, a China, e até mesmo o Brasil, que tem um
cinema riquíssimo e interessante, é local e universal ao mesmo tempo e trata
das idiossincrasias culturais sem perder o diálogo com a cultura cinéfila além
das fronteiras.
Vizontele, comédia dramática do cineasta, roteirista, ator e poeta
turco Yılmaz Erdoğan, é baseada em suas memórias de infância, em especial
quando a televisão chega a um vilarejo remoto da Turquia, em meados dos anos
1970.
E a própria palavra vizontele é a maneira errada com que os habitantes
do vilarejo falam quando se referem à televisão.
Nesse vilarejo, só existe um cinema, que faz exibições ao ar livre e é
administrado por um picareta (Cezmi Bazkin). Devido ao preço dos ingressos,
muita gente acaba assistindo às sessões da laje das casas. O prefeito (Altan
Erkekli) vê que, trazendo a TV para a cidade, quebrará o monopólio do único
local de entretenimento existente ali. Mas isso, é claro, não acontece sem
dificuldades. A mulher do prefeito, de imediato, sob a influência de um líder
religioso, crê que a vizontele é obra do diabo e trará desgraças. E
quando o televisor chega, não funciona. O prefeito então chama Deli Emin
(Yılmaz Erdoğan), um inventor maluco, um excêntrico solitário das montanhas,
que conversa com os pássaros e conserta os rádios do vilarejo, para ajudá-lo a
fazer o aparelho funcionar. O filme torna-se assim uma verdadeira saga para
fazer o eletrodoméstico ligar perante os habitantes cada vez mais incrédulos
com a nova extravagância do prefeito.
A leveza é um dos pontos mais marcantes desse filme. Os seus personagens
flutuam em uma margem agradável de atuação em que são ao mesmo tempo caricatos
e carismáticos. E todos eles são atravessados por um lirismo ingênuo. Tem o
rapaz bêbado, o líder religioso gago, a bela e sonhadora noiva, o noivo que
vai servir ao exército, as crianças que soltam pum olhando as estrelas. E
essas câmeras sempre em movimento, esses enquadramentos mostrando a natureza
sempre imensa e colorida, são elementos que conferem ao filme uma atmosfera
mágica, sonhada, de poesia visual, quase de desenho animado.
A mensagem final talvez seja a de que ninguém pode parar o progresso. Mas é
curioso destacar o embate entre o prefeito e a sua mulher, como se houvesse
ali, transplantada no ambiente doméstico, uma queda-de-braço entre valores
religiosos tradicionais e a secularização que caminha a passos largos. O final
icônico possui certo simbolismo, até parece colocar as coisas em seus devidos
lugares, e que nos deixa pensando. A tecnologia, no fim das contas, não pode
ser tudo.
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