Fuga das Galinhas (2000)

Finalmente vi este pequeno clássico.

Pandemia é tempo de reclusão, tempo de tocar os projetos pessoais que andam parados, tempo de refletir. É tempo, sobretudo, de resolver as muitas "pendências" cinematográficas.

Foi o que eu fiz. Acho que todo mundo que eu conheço já torceu, ao menos uma vez na vida, pela galinha ruiva Ginger, cérebro de inúmeras e malsucedidas fugas da sinistra granja dos Tweedys. E eu, por alguma razão que desconheço, seguia sem ter assistido.

Há filmes em que não cabe mais reclamar dos spoilers, tamanha a popularidade que eles alcançaram entre nós.

Essa impressionante animação em stop motion encabeçada pelos diretores Peter Lord e Nick Park, fruto de uma parceria entre Estados Unidos e Inglaterra, é um desses filmes de interesse perene que sempre passam na TV.

Os filmes que mais reprisam são justamente aqueles que formam a maior fatia da nossa memória afetiva e educação cinematográfica, sobretudo dos que têm o conteúdo da televisão por dieta majoritária ou exclusiva. E Fuga das Galinhas, em certo aspecto, não foge à regra.

Numa granja enorme, de um casal para lá de estranho, em Yorkshire, Inglaterra, nos anos 1950, galinhas poedeiras sonham com a liberdade. A propriedade, do jeito como ela nos é apresentada, parece um tipo de Auschwitz. Os arames farpados, as cercas, os barracões alinhados e padronizados com essa cara fabril decadente, os cães raivosos...

O casal proprietário nem foge do clichê: ela, a ambição em pessoa, a maldade encarnada; ele, um estúpido, tão desagradável quanto à mulher, que a ela se submete.

A produção de ovos não satisfaz a ganância da Sra. Tweedy. A certa altura, ela adquire uma máquina monstruosa que, se de um lado entram as galinhas vivas, do outro saem tortas quentinhas. Sra. Tweedy tem pressa para enriquecer-se.

Enquanto assistia a essa animação, não deixei de pensar naquilo que o historiador israelense Yuval Noah Harari dissera com tanto acerto em seu fascinante livro Sapiens: Uma breve história da humanidade. Que a galinha (ao lado do boi e do porco), sob o ponto de vista da evolução, é um animal de grande sucesso. No entanto, é um animal dos mais miseráveis que habitam o globo, justamente por ter uma existência tão amarrada ao consumo humano.

É bem pouco provável que alguém vá se tornar vegetariano depois de ver essa animação. Creio que o ponto aqui não é questionar o comércio dos ovos ou a matança das aves, mas, sem dúvida, apresentar uma fábula sobre a liberdade. Dito de outra forma, o filme cresce em valor se encontrarmos a humanidade dessas galinhas.

Algumas semelhanças interessantes saltam aos olhos entre Fuga das Galinhas e outra animação bem mais famosa, lançada quase ao mesmo tempo, da gigante Pixar-Disney (quando ainda não se fundiram). Estou falando de A Vida de Inseto (John Lasseter, 1998).

É claro que a Ginger é mais esperta, séria e tem mais foco que a formiguinha atrapalhada Flik. Mas há certa convergência no entorno, nas mensagens. Nem me refiro ao quase obrigatório e onipresente "não devemos deixar de sonhar" e, por extensão, também do "não devemos deixar de lutar por nossos sonhos". Mas, nas duas animações, vemos que: a) a maldade é sempre rígida e obtusa, e ela sempre se volta contra quem a cultiva; b) o trabalho em equipe é essencial, principalmente para desbaratar figuras opressoras, e c) a valorização da criatividade para se desenvolver estratagemas e engenhocas.

Com esses animais, bate-se no chavão do idealismo humano, de que ninguém poderá deter essa força de sempre irmos em frente, rumo à felicidade e à liberdade.

Nesta pandemia, confesso que eu tenho me tornado um tanto menos exigente no que diz respeito aos filmes. Tem me agradado, sobretudo, a "levada" dos filmes, o sentimento que se fixa na minha alma no final, a harmonia dos seus movimentos internos, o casamento dos tempos fortes com os tempos fracos. Se somarmos essa calculada noção de ritmo a uma história clara e agradável, de política simples, se acrescentarmos ainda personagens críveis e cativantes, ser bem filmado e ter um acabamento "redondo", a chance de ter me fisgado é muito alta.

Às vezes, em tempos bicudos como esses, precisamos beber da "demagogia" dos produtos infantojuvenis como quem bebe da última água do deserto. Nós sempre nos esquecemos das coisas óbvias, de modo que volta e meia é preciso que alguém repita de outra forma aquilo que nós já sabemos, para que os nossos olhos se iluminem mais uma vez.

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