Pink Flamingos (1972)

Destoando completamente do espírito natalino, eis aí um filme irreverente de avaliação impossível.

Confesso que assistir até o final esse “exercício do mau gosto” foi como testar os próprios limites. Sim, porque Pink Flamingos, de John Waters, não é um filme para qualquer um. É talvez um dos filmes mais bizarros e repulsivos que já vi na vida. Mais até que Possessão (1981).

Tudo nele é tosco, chulo e precário. Tão tosco e nauseabundo que chega a ser engraçado, pastelão à sua maneira. Um circo escatológico.

E é um filme que zomba dos padrões e critérios, daí sendo difícil enquadrá-lo numa categoria de notas, tão cara à crítica tradicional. 

ESGOTO HIPER-REALISTA

O enredo é banal. Divine (1945-1988 – a “musa” de Waters, uma drag queen que, no filme, está de maquiagem pesada à la Bozo) ganha da imprensa sensacionalista local o título de “a pessoa mais asquerosa do mundo”. Só que o casal Connie e Raymond Marbles (Mink Stole e David Lochary) quer a todo custo tirar de Divine esse título. 

E aí o filme desfila numa sequência de bizarrices e perversões, como se fosse dada a largada a uma espécie de campeonato de baixarias na pequena Baltimore dos anos 1970.

Os personagens são rasos, caricatos, unidimensionais, mas são incrivelmente carismáticos. Os enquadramentos são aleatórios. A fotografia é ruim. A mise-en-scène praticamente não existe. O estilo é tão despojado e solto, que a gente tem sérias dúvidas se os “atores” estão encenando ou sendo, na real, eles mesmos.

As cenas escatológicas são feitas realmente, o que mais impressiona. E nelas tudo cabe: zoofilia, “incesto”, coprofagia, voyeurismo, etc. Há um quê de amadorismo e nonsense nessa película, que aumenta o realismo. Waters hiper-realiza o esgoto. Pink Flamingos está totalmente empenhado que você saia no meio do filme ou muito antes disso.

UM CLÁSSICO IMPROVÁVEL

É possível que Waters não esperasse o sucesso que Pink Flamingos fez, tornando-se de imediato em um clássico improvável. 

Talvez, ao tentar devassar a alma humana – e realizar uma crítica agressiva contra uma sociedade falida, ridicularizando instituições como a polícia e a imprensa, bem como a ilusão da fama –, Waters acabou inventando personagens torpes, mas, de certa maneira, simpáticos para o público.

É certo que o potencial de chocar os atuais espectadores talvez possa ter diminuído nesse quase meio século de existência, não tendo o mesmo poder de tiro que à época do seu lançamento. O simples fato de ter se tornado objeto de culto entre cinéfilos domesticou a sua transgressão. 

A irreverência em subverter o cinema fez de Pink Flamingos um trash movie memorável e exemplar, tornando-se numa espécie de paradigma, de clássico, de “cânone”, absorvido que foi pela sétima arte.

É aí que mora o perigo em avaliar esse “antifilme”. Sim, eu chamo de “antifilme” porque há um esforço consciente de ir contra tudo o que era consagrado e identificável como “cinemão” na época. Só não abdica, à primeira vista, do filme enquanto história – há pelo menos um roteiro, um enredo esboçado linearmente.

Só que o tempo – e o sucesso – fez com que ele deixasse de ser “antifilme” ou “anticinema” e tornou-se derivado daquilo que tanto subverteu e pretendeu distanciar: o aluno rebelde virou professor.

É difícil explicar a repulsa e a atração simultâneas ao assistir esse filme. Talvez porque, no fundo, todo ser humano tem algo de podre, e isso o filme chega a tocar diretamente. Se na concepção “romântica”, a arte é a perseguição do “belo”, a arte em Pink Flamingos é a perseguição do “bizarro”, do “grotesco”, do “ridículo”.

POLITICAMENTE INCORRETO

Enxergá-lo apenas como um cult do underground norte-americano, um ícone da Contracultura ou até mesmo uma espécie de “filho tardio” do movimento hippie e da pop art, é vê-lo tão-somente como um acontecimento – datado e local. 

Ora, se estamos ainda falando dele, depois de tanto tempo, no Brasil do século XXI, é porque Pink Flamingos, sustentado por um carisma muito próprio, resiste e continua resistindo.

Pink Flamingos resiste contra tudo e contra todos, atirando na cara do “bom gosto” projéteis de grosso calibre, projéteis esses em que a vulgaridade e a criatividade – antes inimigas, opostas e imiscíveis – se casam com uma justeza e uma inteligência absurdas.

Feliz Natal!

PINK FLAMINGOS
(idem)
DIREÇÃO John Waters
ELENCO Divine, David Lochary, Mink Stole, Mary Vivian Pearce e Edith Massey
PRODUÇÃO (EUA, 1972, 93 min.)
AVALIAÇÃO: N/A

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