Garganta Profunda (1972)

UM PORNÔ CULT?

Amigos de “direita”, eu sei que vocês me olharão feio por ter assistido (e postado!) tamanha imoralidade. Eu poderia muito bem me justificar, dizendo que assisti para fins cinéfilos, o que de certa maneira é verdade. Sim, para responder à pergunta que não quis calar: como pode um pornô estar na constelação dos clássicos? Mas vocês certamente não acreditarão. Jogarão pedras, farão um escândalo com bocas cuspindo fogo, atirarão com os fuzis de um reinado de terror e virtude...


O que comprova que o público de hoje é muito mais conservador que de 30, 40 anos atrás[i]. Ou será o cinema atual bem mais permissivo?

Outros, porém, ao constatarem que achei o filme horrível, podre, dirão: “Ele assiste ao filme só para destilar seu veneno conservador”. Vou me sentir um Simonal quando fumegado pelas patrulhas de esquerda... E vai até parecer aquela chata celeuma que foi, quando o Oscar de melhor filme não abençoou “O Segredo de Brokeback Mountain” [Ang Lee, 2005][ii].

Veja que interessante. É só na “cama” que se percebe o divórcio aparentemente irreversível entre público e crítica. Pois toda a polêmica há quando o assunto é sexo. E isso parece ser bem pior aqui nos nossos trópicos, numa esquizofrezia de idolatria e repulsa. Que o diga a pornochanchada em seus momentos de glória.

Vamos ao que interessa, meus caros. Ao estranho “épico” vintage de Linda Lovelace (1949-2002), a musa feiosa que arrancou muitos suspiros de uma geração.

O que este filme tem que os outros não têm?

Mas, alguém poderá dizer, fazendo desastrosa defesa: “O filme é antigo; a concepção da época era outra”. Pode ser. Porém, eu ainda fico a perguntar inconformado: Como Garganta Profunda (ou Deep Throat em inglês) pôde fazer o impacto que fez, ser praticamente o queridinho de uma década de grande efervescência cultural, uma espécie de ícone da revolução sexual no mundo?

É inegável sua importância histórica. Embora para um público moderno as suas cenas de sexo beiram o cômico, o risível. O que causa até certo deslocamento da trama é: como um porn pôde ostentar com tanta insistência um sentimentalismo tão kitsch? Pedidos de casamento após uma transa; um indefectível ar de comédia em toda a película. Os enquadramentos ginecológicos são completados com algumas musiquinhas bobas, dançantes. A impressão que fica, depois, é que o filme é de um estranho humor negro, de um sarcasmo grotesco.


 Uma trama tolinha, com um quê surreal. Garota insatisfeita com sua vida sexual, descobre que tem o clitóris na garganta, e busca depois disso o prazer infindo. Uma desculpa até insossa para encher o filme com sexo oral, ou mais especificamente com a técnica anunciada no título. Embora, tecnicamente falando, a desculpa é simples, mas genial em sua simplicidade, eficaz em sua ingenuidade?

Garganta é um filme que não vale muito pelo que é, mas sim pelo que representou para toda uma geração. Afinal, faz algum sentido analisar com olhar crítico um filme pornográfico?

Não paremos por aí. Garganta Profunda recebeu aplausos de vários segmentos da sociedade da época, incluindo pessoas de grande vulto. Personalidades como os cineastas Mike Nichols [diretor de A primeira noite de um homem, 1967] e Martin Scorsese (ganhador do Oscar em 2007), o cantor Frank Sinatra (1915-1998), o escritor Truman Capote (1924-1984), os apresentadores de TV Johnny Carson (1925-2005) e Barbara Walters falaram publicamente do impacto proporcionado pelo filme, sem contar uma efusiva resenha da respeitadíssima crítica de cinema do The New Yorker Pauline Kael (1919-2001), resenha essa que lhe daria depois míticas dores de cabeça e a eterna aura de polemista da contracultura. Dos 25 mil dólares gastos em seis dias de filmagens em Miami Beach, para faturar 600 milhões em todo o mundo. Sem dúvida, um dos mais lucrativos da história!

Embora Linda Lovelace renegasse a importância do Garganta para a sua carreira, alegando inúmeras vezes que fora estuprada e coagida a fazê-lo, passando então sua vida inteira tentando desvincular sua própria imagem da do filme (até morrer num acidente de carro); embora o seu diretor, um tal de Gerard Damiano (1928-2008) continuasse a fazer filmes onde se notavam a tentativa frustrada de se superar e o ostracismo (somente conseguiu sucesso com The Devil in Miss Jones, de 1973), Garganta Profunda é, diante de tantos defeitos formais, um filme sempre polêmico[iii].

É bom aplacar a fúria de tiro. Estamos diante de uma espécie de marco zero do cinema pornô como uma indústria “séria” de entretenimento. É claro que se faziam filmes pornográficos muito antes de 1972, mas não há notícia de que esses filmes contivessem uma história, um enredo, uma trama do modo como Damiano propõe. Tanto é que, do gênero, nenhum título relevante antes disso chegou até nós.

Como hoje onde se fazem ainda zilhões de filmes com o eterno enredo das pessoas que chegam do nada, fazem o serviço e caem fora depois. Aquela velha e repetitiva didática “kamasutriana”, sem autores, só atores. Um vácuo narrativo. Vácuo esse que ainda faz mover bilhões de dólares para produtores, atores, distribuidores, cinemas, vendedores, locadoras, motéis, pirateiros, camelôs, sites... e até hackers. E faz mover os mecanismos nada secretos do crescimento demográfico.

Mas Garganta é bem mais interessante que os produtos da fabriqueta Brasileirinhas[iv]. E isso quando o mundo pornô nem sequer sonhava com cachês milionários e seu consumo era gosto maldito, underground.

Garganta Profunda não é um fruto a-histórico de um “gênio” isolado. É preciso considerar o fato de, antes de 1970, as legislações norte-americanas encaravam a pornografia como uma atitude criminosa, sendo sua produção e o seu comércio vistos como uma espécie de contravenção social a ser extirpada. Com a extinção do Código de Filmes e a instituição da classificação por faixa etária, o cinema pornô sofreu forte impulso, já que – com o “status” de cinema – sairia do submundo do crime para ser produzido em indústrias devidamente instaladas e apresentado em “salas especiais”.

Deep Throat consegue a façanha de “ser” história. “Amarra” as cenas mórbidas de sexo explícito com uma historinha, rabiscando alguns porquês, contextualizando a transa com a vida dos personagens. É fato que são personagens caricatos, esquemáticos, rasos, bidimensionais, toscos. Ainda assim são protagonistas de uma abordagem inédita da sexualidade de uma época, e frutos de uma visão genial e original de se encarar a indústria cultural.

O que correspondeu em cheio aos anseios das vanguardas, principalmente corroborando (diga-se de passagem indireta e involuntariamente) com o espírito de contestação nascido após o Maio de 68 francês. Garganta indubitavelmente serviu de “cartilha” tanto para o porn softcore Emanuelle” [clássico francês dos anos 70, 80, com Sylvia Kristal] quanto o hardcore “de época” Calígula [Brass, Guccione, Lui, 1979], obras essas que, se não beberam “estilisticamente” das águas de Damiano, trilharam o caminho aberto por ele...

Se é um filme hoje incapaz talvez de excitar um garoto de quinze anos, se é um filme capenga, de história boboca e atuações dramáticas demanteladas, um filme feito apenas para a diversão descompromissada, afrodisíaca e desinteligente das massas, é válido registrar que o seu sarcasmo sujo ainda assim é de uma petulância louvável e visionária, que auxiliou (querendo ou não) o alvorecer das novas mentalidades.

Malin Akerman [Watchmen, 2009] fará o papel principal na biografia de Linda Lovelace, no lugar da anteriormente escolhida Lindsay Lohan [Meninas Malvadas, 2004]. A produção independente intitulada “Inferno: A Linda Lovelace Story” ainda segue sem data definida de estreia no país. Como se não bastasse, Kate Hudson [Como perder um homem em dez dias, 2003] também viverá o papel da musa em um outro longa-metragem, adaptação do livro “The Complete Linda Lovelace”, de Eric Danville. Esse filme também está com data de estreia indefinida.

NOTAS



[i] “...é triste confirmar isso, mas o espectador virou mais moralista e pudico do que nos anos 70, por exemplo” é afirmação do renomado crítico Rubens Ewald Filho em seu blog:
http://noticias.r7.com/blogs/rubens-ewaldfilho/2011/01/27/estreia-o-amor-e-outras-drogas/

[ii] Na imprensa da época, “O Segredo de Brokeback Mountain” levantou certa polêmica. Para muitos, ele não levou o prêmio de melhor filme por causa exclusivamente do “eleitorado conservador”. Diário de Cuiabá, 12/03/2006.

[iii] Olha que interessante. O filme estreou em 12/06/1972, num cinema da Rua 42, na Cidade de Nova York. Seis dias depois, o The Washington Post noticiava na primeira página o assalto à sede do Comitê Nacional Democrata, no Complexo Watergate. Durante a campanha eleitoral, cinco pessoas foram detidas quando tentaram fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata. Dois repórteres do Washington Post começaram a investigar o então já chamado “Caso Watergate”. Durante muitos meses, o dois repórteres estabeleceram as ligações entre a Casa Branca e o assalto ao edifício de Watergate. Eles foram informados por uma pessoa conhecida apenas por “Garganta Profunda” (Deep Throat) que revelou que o presidente sabia das operações ilegais.

[iv] O selo mais popular de pornôs do país, Brasileirinhas, tenta aos poucos imprimir padrão técnico em suas filmagens. José Gaspar, famoso por dirigir produções caras com celebridades B, diz que aos poucos, conseguiu melhorar a parte técnica e dar alguma identidade visual aos filmes. Segundo a reportagem de abril de 2006 da Revista Época, seu filme Fidelidade à Prova, “tem ares de filme noir e figurino à Poderoso Chefão”. Indicado ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no AVN Awards, o Oscar pornô americano, em 2003 com Gotic, seus filmes são recordes de venda, com figuras famosas como Rita Cadillac, Vivi Fernandez e a emblemática Leila Lopes (1959-2009).

Comentários

Eu disse…
Filme bom é esse,é claro prefiro mas a marcia imperator, mas eu curto,antigo e bom
Dark Sombrio disse…
MÍÍÍÍÍÍÍTICO!!!!!!!!

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