"Tropa de Elite 2": Um clássico sem comparações


SAÍ BOBO DO LENDÁRIO cinema Marabá. A garoa caía naquela noite de sábado de estreia, molhando a Avenida Ipiranga e a minha perplexidade. Eu nunca pensei que veria um filme nacional com tais proporções. Precisei de ar, reatar as ideias, refletir melhor. E euforicamente gritei: "Pow, que clássico!"

Cansado, prestes a cair com um sopro, mas ao mesmo tempo forte e com um peso descomunal sobre os ombros, vemos Capitão Nascimento (Wagner Moura) mais velho, heroico e trágico. Anos se passaram desde os fatos do primeiro filme. Porém, se todos já estão mais velhos, Capitão Nascimento é que de fato melhor ostenta um ar acabado, vulnerável, batido, e... firme!

Ao contrário do primeiro filme, onde víamos um garoto bravo, metendo esporro em todo mundo, agora vemos um "coroa" às voltas com problemas bem mais complexos, e inimigos bem mais poderosos. Agindo de perto das grandes engrenagens do "sistema", Nascimento não só bate de frente com as milícias, mas também tenta equilibrar sua vida profissional com as preocupações constantes com o filho adolescente (Pedro Van-Held), já que o Capitão se separou de sua mulher (Maria Ribeiro).

Estamos testemunhando uma formidável performance de Wagner Moura no papel que o consagrou. É incrível como ele preenche na tela a alma do personagem, vincando com verossimilhança terrível as linhas incontornáveis do inferno pessoal de Nascimento. Há até quem diga que Wagner Moura possa ser futuramente confundido pelo seu personagem, como é o caso do Kiefer Sutherland se confundir tanto com seu Jack Bauer. De fato, indubitavelmente Capitão Roberto Nascimento é um dos personagens mais emblemáticos, polêmicos e complexos do cinema nacional, sintetizando em si tantas contradições. Atrevo-me até a dizer que ele é o único grande ícone cinematográfico produzido nessa era de Cinema da Retomada (pós-1995).

Rebelião, Bangu I. Ali, os destinos se cruzam do Capitão Nascimento e do ativista social Diogo Fraga (Irandhir Santos) - inspirado na trajetória do deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (PSOL), ativista que participou das negociações entre o Bope e os presos de Bangu na megarrebelião de 2003. Irandhir consegue viver seu papel, sem nunca apelar para o caricato, comprovando seu talento formidável em sua carreira ascendente desde a série "A Pedra do Reino" [Globo, Luiz Fernando Carvalho, 2008]. Não podemos também esquecer a figura do ator e cantor Seu Jorge, na pele do criminoso Beirada que lidera a rebelião no Presídio (Padilha descarta que ele foi inspirado no traficante Fernandinho Beira-Mar). Apesar de sua atuação ser relâmpago, ela não fica atrás de ninguém.

Agora temos a sensação que a história de fato começou. Ora, no primeiro filme, de 2007, tudo aquilo era um prelúdio, uma apresentação dos personagens, do BOPE, do Rio de Janeiro. O segundo filme, partindo da premissa que está mais do que claro quem é quem, cresce com maior desenvoltura, mais maduro, mais instigante e... extremamente mais polêmico!



José Padilha se mostra um diretor ímpar na recente história de cinema brasileiro. De formação em Exatas (Engenharia e Física), Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro é o terceiro filme dirigido por ele. Fechando uma trilogia intrinseca e intimamente relacionada - os dois Tropa e o formidável documentário Ônibus 174 [2002] - Padilha constrói uma das mais excitantes discussões sobre segurança pública do Rio de Janeiro. Seu Tropa 1, apesar da pirataria, foi o mais discutido da história e ganhou vários prêmios importantes, entre eles o Prêmio Urso de Ouro de melhor filme em 2008, do Festival de Berlim.

Se no Ônibus 174, José Padilha choca com sua análise crítica ao fazer o espectador reencontrar as imagens que encheram as TV's da tarde de 12 de julho de 2000, entrelaçando a vida dos moradores de rua (por extensão, também a vida do sequestrador Sandro do Nascimento) e o fracasso da operação do BOPE (com a morte da refém Geísa Gonçalves), em ambos os Tropa há o mesmo olhar inquietante sobre a situação social do Rio de Janeiro. É como se em cada película, a análise do Padilha subisse mais degraus e enxergasse mais e mais as variáveis complexas do grande problema social chamado violência carioca.

E é também como se em cada película, Padilha aperfeiçoasse mais a sua qualidade técnica e a contundência de seu realismo.

Tropa de Elite 2 tem uma sacada estratégica super-inteligente. A de unir elementos do "cine pipoca" com a discussão visceral de temas constantes do cinema político. Em outras palavras, ele consegue ser envolvente, prender a nossa atenção como qualquer ótimo filme de entretenimento, mas, também, nos empurra para a reflexão, para a discussão, como qualquer grande filme político do cenário independente. No Brasil, tal duplicidade nunca foi explorada com tanta eficácia. Consegue conduzir um "papo-cabeça" sem ser chato, pedante, demasiado intelectualóide; consegue aprisionar o nosso olhar sem ser em nenhum instante alienante como é praxe da indústria cultural de massa. Tropa de Elite 2 surge então como um milagre em nossas telonas.

José Padilha está inteiramente convicto que a Arte nunca deve dar as respostas. Por isso, em todos os seus filmes há choques de vozes, de linhas de pensamento, onde os personagens muito bem construídos (ou os depoimentos de pessoas reais, como é o caso do documentário de 2002) imprimem suas crenças nesse fluxo caótico de acontecimentos chamado realidade, sem nunca tomar por terminada essa polêmica social, mas apenas projetando na tela sua afiada ponta de lança.



Em seus filmes, os personagens vivem as suas certezas, como podemos facilmente enxergar nas divergências ideológicas de se tratar o preso, tipificadas com Nascimento e com Fraga. São personagens movidos por crenças, paixões, valores à flor da pele...

Padilha trafega na contramão do cinema nacional dos últimos dez anos: faz filme de ação, sabendo o quão raros nesse formato são feitos nestes trópicos, onde há predileção por comédias (Auto da Compadecida [Guel Arraes, 2000], Lisbela e o Prisioneiro [Guel Arraes, 2003], Se eu fosse você 1 e 2 [Daniel Filho, 2006 e 2009]), por dramas (Central do Brasil [Walter Salles, 1998], A Lavoura Arcaica [Luiz Fernando Carvalho, 2001]) e a mais recente onda de filmes de temática espírita. E, em contramão histórica, faz filme com o ponto de vista policial, sabendo que os grandes diretores nacionais sempre caminharam no sentido da romantização dos bandidos, como aconteceu no Rio, 40 graus [Nelson Pereira dos Santos, 1955], O bandido da luz vermelha [Sganzerla, 1968], Cidade de Deus [Fernando Meirelles, 2002], Pixote: A Lei do Mais Fraco [Hector Babenco, 1981], Quem Matou Pixote? [José Joffily, 1996], Carandiru [Hector Babenco, 2002], etc.

Aliás, cinema sobre favela já é um estilo todo nosso, da mesma maneira que os Estados Unidos têm seus westerns e os seus musicais. Embora essa herança de idealizar tanto os malandros seja um reflexo cultural do que já acontece há muito tempo, como podemos observar nos sambas de morro e cordões carnavalescos desde o começo do século XX até os dias de hoje. Estereótipo do homem que transformou dos problemas razão para sucesso, do sobrevivente da desigualdade social, do conquistador de mulheres, do ladrão aventureiro que foge da polícia... é assim que a cultura popular descreve o malandro, e é assim que Padilha & sua equipe - contradizendo corajosamente o senso comum - surge como um tiro no meio da orquestra, como uma cebola saborosa numa salada de frutas já em bolor.

Tanto é que, quando o BOPE se prepara para entrar no Bangu I para acabar com a rebelião, o governador do Rio de Janeiro, no filme, diz categórico: "Não quero outro Carandiru!". Obviamente, ele se refere ao massacre do Carandiru, ocorrido em 1992. Mas poderíamos até imaginar que seja o próprio diretor falando para si mesmo que não quer que esse filme se torne outro Carandiru, em referência direta ao filme de Hector Babenco e/ou ao livro de Drauzio Varella. Porque de fato Padilha se afasta diametralmente da filosofia idealista, romântica e extremamente humanizadora do relato Varella-Babenco, não só na parte da repressão da rebelião, mas no contexto geral. Forma-se então um diálogo, mas também uma... digamos, uma contestação.

Infelizmente se explica assim as confusões da Crítica Especializada (acostumada com malandros charmosos e tão cheios da ginga) em tachar tanto Tropa como maniqueísta e fascista. Fascista? Como bem disse Padilha na primeira coletiva à imprensa: "Na época do Tropa 1, houve discussão se o filme era fascista ou não. Fascismo é movimento político partidário que tem por objetivo fechar o parlamento, ser exportado para outros países etc. O capitão Nascimento não quer fechar o parlamento. Dizer que o primeiro filme é fascista é não entender bulhufas do que se passou. A única maneira de o filme ser panfletário seria se o Congresso Nacional fosse totalmente honesto, ninguém tivesse sido eleito pela milícia. Meu filme não fala mentiras." - Diário de Pernambuco. Maniqueísta? Ora, de fato existem policiais honestos, e bandidos truculentos, razão pela qual o embate é inevitável. Mas há também os policiais corruptos, como o impagável Coronel Fábio (Milhem Cortaz), dono dos mais engraçados e impublicáveis bordões.



André Mattos, ator e humorista, vive o caricato Fortunato, jornalista sensacionalista e... deputado corrupto, líder de uma das mais perigosas milícias do Rio de Janeiro. Ele funciona como uma interessante válvula de escape para o humor no filme, vivendo frente às câmeras o apresentador do seu programa 'Mira Geral'. Livremente inspirado nos ícones do jornalismo policial como Gil Gomes, Luiz Carlos Alborghetti, Ratinho ou Wagner Montes, Fortunato exemplifica de modo genial a mídia interesseira, partidarizada e tão cheia de politicagem, comum em terras brasileiras.

O roteiro é ágil, é estonteante. Bráulio Mantovanni e José Padilha conseguiram imprimir uma velocidade alucinante, um ritmo excitante na trama, equiparando a película ao genialíssimo 'O segredo dos seus olhos' [Juan Jose Campanella, 2009] e aos melhores filmes de ação dos Estados Unidos, como 'Seven - Os 7 pecados capitais' [David Fincher, 1995], 'Zona Verde' [Paul Greengrass, 2010] e 'Serpico' [Sidney Lumet, 1973]. É com essa dívida ao bom cinema norte-americano que Tropa 2 quebra recordes nacionais de bilheteria, mudando definitivamente a maneira de se encarar o cinema brasileiro, levando a plateia a uma espécie de catarse, de transe cinematográfico, da euforia, da emoção. Ainda falando do seu personagem Nascimento: “É importante distinguir a diferença entre herói e ícone pop. E o Nascimento não é um herói”, pondera Padilha. “Por exemplo: o Dom Corleone [personagem da trilogia 'O poderoso chefão' - Francis Ford Copolla, 1972, 1974, 1990]. É um personagem carismático, de apelo popular, embora seja um mafioso assassino. Em outras culturas há milhões de ícones pop violentos e com a moral torta. É um fenômeno esporádico que acontece no cinema.” - site G1.

Apesar dos lances de humor, o filme é amargo, é pessimista, sanguinolento, quase niilista. Nascimento parece viver uma epopeia solitária e quase quixotesca de acabar com a violência no Rio de Janeiro, diante de um sistema gigantesco, esmagador, móvel e resistente, fruto de uma política de segurança pública falida e de uma violência mórbida e onipresente do crime organizado. Ali Capitão Nascimento percebe como realidade estilhaçando seus valores morais que, para acabar com a violência, é preciso envolver muito mais questões políticas que meras questões técnicas ou táticas militares. E, ao contrário do primeiro filme, nem toda missão dada seja de fato missão cumprida...

Sem ficar restrito a uma porção geográfica (Rio de Janeiro, em questão), o filme termina e nos convida a começar uma reflexão estupenda sobre as mazelas do nosso Miserável Brasil Grande. O filme atira para todos os lados, com uma coragem impressionante, como alguém em uma possante metralhadora giratória. Parece até que o José Padilha encarnou seu personagem e, como cineasta, se imbui de agressividade corajosa para efetivar bombásticas denúncias.

Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro é um filme sumamente necessário para quem gosta de bons filmes de ação e quer entender o nosso contraditório Brasil contemporâneo. Dizer 'filme obrigatório' soaria até mal, mas não deixaria de ser grande fato. Pai de grandes e deliciantes discussões políticas, forte candidato a empalmar o Oscar de melhor filme em 2012, Tropa 2 já atingiu facilmente - e com justiça - o status de grande clássico brasileiro dos nossos tempos. Que venha logo o terceiro!

Imperdível, recomendado, simplesmente essencial.

Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro, 2010. Direção: José Padilha. Com: Wagner Moura, Maria Ribeiro, André Ramiro. 116 min. Não recomendado para menores de 14 anos.

Comentários

Dark Sombrio disse…
MONSRUOSO. MAS O FILME É EXELENTE
divugue meu blog para todos, eu disse TODOS.
Dark Sombrio disse…
droga! escrevi errado, corrigindo: "divulgue"
Rubens Marinho disse…
"Apesar dos lances de humor, o filme é amargo, é pessimista, sanguinolento, quase niilista", novidade, isso é algo que realmente não se tem no cinema nacional. Brincaderia, gostei do tua crítica amigo, confesso, um tanto exagerada na tamanho. Rapaz guloso, fosse colunista da Folha ia querer uma página só pra você, rssssssssss, brincadeiras à parte, boa crítica. Quero dizer, até a parte que eu li, rssssssssssss
Grilo disse…
Nem preciso dizer que o texto tá grande pra cacete, certo?

Mas está muito bom! Bem analítico, pegando várias vertentes e pontos de vista "escondidos na trama" sem dar pistas do enredo. Uma bela dissertação, se me permite chamar assim. Muito legal!

Talvez você tenha falado mais das pretensões do diretor, por causa disso. Eu senti uma faltazinha de saber como é construída a história: o roteiro, a fotografia, a trilha... essas coisas mais superficiais, que formam o cine pipoca. De qualquer forma, se vc omitiu para não dar pistas do filme, parabéns: fiquei ainda mais curioso para assistir!
Foose disse…
Olá!

Brilhante sua analise! Gostei dos pontos que você ressaltou sem entregar os pontos fortes do filme. Vc falou tudo... o filme é realmente bom! Amadureceu os personagens e a historia! Saí da sessão com a impressão de que nosso cinema está amadurecendo!E isso é muito bom! Só acho que esse filme tinha que ter sido lançado antes das eleições! Parabéns pelo belíssimo texto!!!

Gostei muito de perceber que agora você segue o Blog "Sétima Art". Muito obrigado e seja bem vindo!

Um grande abraço...

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