O Lado Escuro da Lua
Aqueles dois seres formavam um casal perfeito.
Não importa à nossa história se era ou não um casal heterossexual. Vamos chamá-los de "A" e "B", como duas incógnitas em um mundo de loucos.
De mãos dadas em uma praça de metal, no coração de São Paulo. O cheiro do churrasquinho de gato, o sol inclinado sobre as fitinhas verdes e amarelas festejando a Copa do Mundo... O casal ria de boçalidades - o romantismo ingênuo dos que não se conhecem.
- Se tivéssemos asas, voaríamos para bem longe daqui - disse-lhe "B", mordendo-lhe o pescoço.
- Aqui já é o lugar dos meus sonhos. - retorquiu "A".
E se calaram.
Andando pelas calçadas tortas, o sorvete de morango derretendo na mão... "A" olhava "B", e "B" ficava em silêncio, ruminando pensamentos. "A" apenas olhava de lado, como se pudesse externar desconfianças infantis através de preocupações exageradas.
- Deixe-me mudar você - disse-lhe "A", de repente, quebrando o silêncio - Deixe-me fabricar você na medida perfeita.
"B" sorriu. "B" amava "A" e sabia disso.
E aquelas duas pessoas continuaram a caminhar, sem pressa de nada, pisando a calçada e a poeira do Tempo...
"B" sorria, pois, preocupação desse naipe só podia ser amor. Suspirou versos e arco-íris. Sentindo-se o máximo - sentindo-se amado -, ele entregou sua mão. Não conhecia aquelas ruas. Eram ruas feias, de asfalto molhado a óleo. Mas deixou-se levar. "A" segurou-lhe firme, entrelaçando os dedos entre as mãos, com romantismo urbano.
O sol fazia explodir as laterais dos ônibus, o velho trem que nunca se cansava e os mil anúncios publicitários.
Alguns olhavam o casal com censura; outros, com muita inveja. A imensa maioria preferiu ignorar a fantasia dos dois, pois essa sempre é a preferência mais óbvia dos que têm medo de se envolver com compromisso. E o casal de nada ligava.
- Deixe-me mudar você - repetiu "A", arrancando de "B" sua capa de veludo e sonhos - Deixe-me...
De "B" saiu sangue, saiu dor lancinante. Mas "A" sabia das coisas; e amor é abdicação. A capa caiu, saiu como couro tirado de um animal. "B" sentiu falta de ar por causa da dor.
- Vem, corre, vem - e "A" saiu correndo, numa pressa divertida e infantil - Corre...
"B" tentou correr. Seus pulmões não se fartavam com o oxigênio que entrava em violentas golfadas. Suas pernas vacilaram, caiu de joelhos. Encarou a água vermelha de sangue que corria farta na sarjeta. Seu rosto surgiu, refletido e jovem.
- Não seja mole, vamos! - disse "A", já diminuindo no horizonte.
"B" ensaiou repentina resolução, pôs-se de pé com visível dificuldade, e alcançou "A", ainda que com passos trôpegos.
Ao redor, árvores secas de ramos retorcidos. O som era gostoso, dos pés amassando os seixos frouxos, da estrada de pedra. Sons confusos vinham por detrás dos troncos nus. "A" abraçava meigamente "B", e "B" retribuía com a mesma meiguice. Abraçados, amarrados um ao outro, caminhavam a esmo, enquanto o sol se escondia atrás dos prédios vermelhos que caíam aos pedaços.
- Deixe-me mudar você, vai - disse "A", tirando do ouvido direito de "B" o único fone enxovalhado. Calou-se para sempre a canção de estímulo e sentimento, enquanto o som da realidade - tiros, explosões e gritos - chegaram aos seus ouvidos com plenitude desnecessária.
"A" e "B" então brincavam com a boçalidade adulta dos que se querem sem segredo. "B" atuava bem, com esforço sobre-humano, pois o vácuo no peito atrapalhava o natural desempenho.
E não gostou de ver "A" do jeito que se mostrava. Ao contrário de sua própria pele irritada e vulnerável, parecia que "A" se vestira de tons de aço e de cobre.
- Me aceite como eu sou - retrucou "A", com irracional violência - Me aceite como eu sou...
"B" ficou hipnotizado por essas frases, começando tão peremptórias, e terminando doces, truncadas por carícias e beijos. Já era noite. Do céu se podia ver as estrelas cadentes - ou bombas caindo para destruir a felicidade.
E juntos podiam enfrentar o mundo, pois não tinham medo de nada. É o que aparentavam.
- Deixe-me mudar você - "A" disse com um beijo molhado - e me aceite como eu sou...
Sentados à beira do caminho, o casal afastou um pouco os pés. A sarjeta se enchia depressa de sangue. O sangue sujava as caixas que continham a nostalgia de "B". "B" fez menção de retirá-las, mas "A" falou para não esquentar a cabeça.
- Vamos - e se levantaram, abandonando as caixas.
Os carros corriam enlouquecidos, com suas músicas de paranoia. As cortinas se queimavam, o fogo consumia as flores e as fotografias de casamento. "B" tossia, mancava, sofria - tinha movimentos tolhidos por causa da roupa grudada com seu sangue seco, mas paradoxalmente ia leve num abraço sexual. "A" caminhava com tranquilidade, roendo a unha da mão tranquilamente, enquanto o outro braço apossava do seu bem...
Ao penhasco chegaram.
- Deixe-me mais uma vez mudar você - tornou "A", insistente, procurando com as mãos, sobre a pele de "B" que reclamava remédio.
"B" afastou essa mão com secura lúcida; e disse, repetindo o tom:
- Deixe-me mudar você.
- Não. Aceite-me como eu sou.
Silêncio. Não, som de catástrofes se diluindo no ar daquelas lonjuras; as ondas se quebrando nas pedras da base do penhasco. E o vento sacudia os cabelos daquele casal.
- Deixe-me mudar você.
- Não, não, não...
Atrás do casal caminhões explodiam. Um trem descarrilou. Crianças queimadas choravam por seus membros perdidos. O fogo consumia as fitinhas da Copa do Mundo. O plástico derretido banhava os adolescentes petrificados.
"A" e "B" olhavam o precipício, e o mar que se agitava lá embaixo, boiando coisas indistintas. De mãos dadas. Mas os dedos vacilaram, e se separaram.
- Adeus. - disse "A".
"B" demorou para entender. Sua mão estava boba, inerte, como pássaro sempre engaiolado agora visto em liberdade. "B" sentiu algo estranho, um quê de desespero por causa dessa nova condição...
- Adeus - repetiu "A".
Não olhava "B" nos olhos. Falava para o chão, para os seus pés embarrados e feridos. "B" percebeu que da testa de "A" saía um filete de sangue escuro, que escorria até o final do queixo.
"B" poderia então abraçar "A", se isso saltasse do meio de suas vontades disformes e pensamentos em liquidificador. Mas do nada, ao lado, cheirando a coisa queimada e coberto de fuligem, alguém com uma máscara de gás aparece, ostentando extravagante proximidade.
Parecia que conhecia "A" desde muito tempo atrás, muito, muito mesmo.
- Me aceite como eu sou - disse então "A" para a pessoa com máscara, enquanto o sangue formava em seu rosto, daquele filete, uma máscara líquida.
A pessoa da máscara parecia uma mosca gigante. Pôs calmamente sua mão na parte mais íntima e sensível de "A", e "A" se retesava numa tranquilidade prazerosa. Explosões se fizeram sentir, como orquestra emprestada do Inferno. O chão tremeu. Mas aqueles dois se sentiam muito à vontade.
E um segundo bastou para "B" pular do precipício.
Na queda, em nada pensou. O ar parecia cortar a sua pele inflamada. Na água mergulhou, e sem saber porquê, seguindo uma intuição irresistível, procurava pelo fundo do mar. Lágrimas se diluíam no mar... Crianças mortas e sorridentes atrapalhavam seu intento, dançando n'água em diferentes níveis.
Mas "B" continuou.
No fundo, ao lado de um coral safado, seu fone enxovalhado, sua capa e suas caixas esperavam-no como as relíquias supremas da ressurreição.
Era sua Alma quem chamava. Numa língua que desconhecia palavras, mas que era certeira e convidativa como o lento rolar das estações.
Não importa à nossa história se era ou não um casal heterossexual. Vamos chamá-los de "A" e "B", como duas incógnitas em um mundo de loucos.
De mãos dadas em uma praça de metal, no coração de São Paulo. O cheiro do churrasquinho de gato, o sol inclinado sobre as fitinhas verdes e amarelas festejando a Copa do Mundo... O casal ria de boçalidades - o romantismo ingênuo dos que não se conhecem.
- Se tivéssemos asas, voaríamos para bem longe daqui - disse-lhe "B", mordendo-lhe o pescoço.
- Aqui já é o lugar dos meus sonhos. - retorquiu "A".
E se calaram.
Andando pelas calçadas tortas, o sorvete de morango derretendo na mão... "A" olhava "B", e "B" ficava em silêncio, ruminando pensamentos. "A" apenas olhava de lado, como se pudesse externar desconfianças infantis através de preocupações exageradas.
- Deixe-me mudar você - disse-lhe "A", de repente, quebrando o silêncio - Deixe-me fabricar você na medida perfeita.
"B" sorriu. "B" amava "A" e sabia disso.
E aquelas duas pessoas continuaram a caminhar, sem pressa de nada, pisando a calçada e a poeira do Tempo...
"B" sorria, pois, preocupação desse naipe só podia ser amor. Suspirou versos e arco-íris. Sentindo-se o máximo - sentindo-se amado -, ele entregou sua mão. Não conhecia aquelas ruas. Eram ruas feias, de asfalto molhado a óleo. Mas deixou-se levar. "A" segurou-lhe firme, entrelaçando os dedos entre as mãos, com romantismo urbano.
O sol fazia explodir as laterais dos ônibus, o velho trem que nunca se cansava e os mil anúncios publicitários.
Alguns olhavam o casal com censura; outros, com muita inveja. A imensa maioria preferiu ignorar a fantasia dos dois, pois essa sempre é a preferência mais óbvia dos que têm medo de se envolver com compromisso. E o casal de nada ligava.
- Deixe-me mudar você - repetiu "A", arrancando de "B" sua capa de veludo e sonhos - Deixe-me...
De "B" saiu sangue, saiu dor lancinante. Mas "A" sabia das coisas; e amor é abdicação. A capa caiu, saiu como couro tirado de um animal. "B" sentiu falta de ar por causa da dor.
- Vem, corre, vem - e "A" saiu correndo, numa pressa divertida e infantil - Corre...
"B" tentou correr. Seus pulmões não se fartavam com o oxigênio que entrava em violentas golfadas. Suas pernas vacilaram, caiu de joelhos. Encarou a água vermelha de sangue que corria farta na sarjeta. Seu rosto surgiu, refletido e jovem.
- Não seja mole, vamos! - disse "A", já diminuindo no horizonte.
"B" ensaiou repentina resolução, pôs-se de pé com visível dificuldade, e alcançou "A", ainda que com passos trôpegos.
Ao redor, árvores secas de ramos retorcidos. O som era gostoso, dos pés amassando os seixos frouxos, da estrada de pedra. Sons confusos vinham por detrás dos troncos nus. "A" abraçava meigamente "B", e "B" retribuía com a mesma meiguice. Abraçados, amarrados um ao outro, caminhavam a esmo, enquanto o sol se escondia atrás dos prédios vermelhos que caíam aos pedaços.
- Deixe-me mudar você, vai - disse "A", tirando do ouvido direito de "B" o único fone enxovalhado. Calou-se para sempre a canção de estímulo e sentimento, enquanto o som da realidade - tiros, explosões e gritos - chegaram aos seus ouvidos com plenitude desnecessária.
"A" e "B" então brincavam com a boçalidade adulta dos que se querem sem segredo. "B" atuava bem, com esforço sobre-humano, pois o vácuo no peito atrapalhava o natural desempenho.
E não gostou de ver "A" do jeito que se mostrava. Ao contrário de sua própria pele irritada e vulnerável, parecia que "A" se vestira de tons de aço e de cobre.
- Me aceite como eu sou - retrucou "A", com irracional violência - Me aceite como eu sou...
"B" ficou hipnotizado por essas frases, começando tão peremptórias, e terminando doces, truncadas por carícias e beijos. Já era noite. Do céu se podia ver as estrelas cadentes - ou bombas caindo para destruir a felicidade.
E juntos podiam enfrentar o mundo, pois não tinham medo de nada. É o que aparentavam.
- Deixe-me mudar você - "A" disse com um beijo molhado - e me aceite como eu sou...
Sentados à beira do caminho, o casal afastou um pouco os pés. A sarjeta se enchia depressa de sangue. O sangue sujava as caixas que continham a nostalgia de "B". "B" fez menção de retirá-las, mas "A" falou para não esquentar a cabeça.
- Vamos - e se levantaram, abandonando as caixas.
Os carros corriam enlouquecidos, com suas músicas de paranoia. As cortinas se queimavam, o fogo consumia as flores e as fotografias de casamento. "B" tossia, mancava, sofria - tinha movimentos tolhidos por causa da roupa grudada com seu sangue seco, mas paradoxalmente ia leve num abraço sexual. "A" caminhava com tranquilidade, roendo a unha da mão tranquilamente, enquanto o outro braço apossava do seu bem...
Ao penhasco chegaram.
- Deixe-me mais uma vez mudar você - tornou "A", insistente, procurando com as mãos, sobre a pele de "B" que reclamava remédio.
"B" afastou essa mão com secura lúcida; e disse, repetindo o tom:
- Deixe-me mudar você.
- Não. Aceite-me como eu sou.
Silêncio. Não, som de catástrofes se diluindo no ar daquelas lonjuras; as ondas se quebrando nas pedras da base do penhasco. E o vento sacudia os cabelos daquele casal.
- Deixe-me mudar você.
- Não, não, não...
Atrás do casal caminhões explodiam. Um trem descarrilou. Crianças queimadas choravam por seus membros perdidos. O fogo consumia as fitinhas da Copa do Mundo. O plástico derretido banhava os adolescentes petrificados.
"A" e "B" olhavam o precipício, e o mar que se agitava lá embaixo, boiando coisas indistintas. De mãos dadas. Mas os dedos vacilaram, e se separaram.
- Adeus. - disse "A".
"B" demorou para entender. Sua mão estava boba, inerte, como pássaro sempre engaiolado agora visto em liberdade. "B" sentiu algo estranho, um quê de desespero por causa dessa nova condição...
- Adeus - repetiu "A".
Não olhava "B" nos olhos. Falava para o chão, para os seus pés embarrados e feridos. "B" percebeu que da testa de "A" saía um filete de sangue escuro, que escorria até o final do queixo.
"B" poderia então abraçar "A", se isso saltasse do meio de suas vontades disformes e pensamentos em liquidificador. Mas do nada, ao lado, cheirando a coisa queimada e coberto de fuligem, alguém com uma máscara de gás aparece, ostentando extravagante proximidade.
Parecia que conhecia "A" desde muito tempo atrás, muito, muito mesmo.
- Me aceite como eu sou - disse então "A" para a pessoa com máscara, enquanto o sangue formava em seu rosto, daquele filete, uma máscara líquida.
A pessoa da máscara parecia uma mosca gigante. Pôs calmamente sua mão na parte mais íntima e sensível de "A", e "A" se retesava numa tranquilidade prazerosa. Explosões se fizeram sentir, como orquestra emprestada do Inferno. O chão tremeu. Mas aqueles dois se sentiam muito à vontade.
E um segundo bastou para "B" pular do precipício.
Na queda, em nada pensou. O ar parecia cortar a sua pele inflamada. Na água mergulhou, e sem saber porquê, seguindo uma intuição irresistível, procurava pelo fundo do mar. Lágrimas se diluíam no mar... Crianças mortas e sorridentes atrapalhavam seu intento, dançando n'água em diferentes níveis.
Mas "B" continuou.
No fundo, ao lado de um coral safado, seu fone enxovalhado, sua capa e suas caixas esperavam-no como as relíquias supremas da ressurreição.
Era sua Alma quem chamava. Numa língua que desconhecia palavras, mas que era certeira e convidativa como o lento rolar das estações.
Comentários
Extraordinário.
Experimental no estético, um tanto surreal e simbólico, mas sem deixar de ser simples e sensível, a ponto de ser quase psicanalítico.
Sobre uma realidade interior em todos nós, mas "externalizado" no cenário.
Não gosto de ficar analisando as intenções do autor, mas gostei do texto porque assim que me tocou.
Sucesso!